Abertura

A presidir à abertura, o Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professor Doutor Pedro Romano Martinez

Discurso do Presidente da Direção Nacional
https://www.youtube.com/watch?v=osK9ujjuTOY
Exmo. Senhor Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mui ilustre Professor Doutor Pedro Romano Martinez
Aceite V. Exa., em nome da Associação-sócio Profissional da Polícia Marítima, os mais sinceros agradecimentos.
É com enorme agrado que vemos esta Faculdade acolher a nossa 4ª Conferência, uma reflexão coletiva que promete a mais elevada dimensão intelectual e académica.
Permita-nos igualmente afirmar que esta Escola do Direito é também a nossa escola, pois nela sentimo-nos em casa.
Aqui escutamos, aprendemos, discutimos, examinamos e aprofundamos reflexões em matérias tão importantes e complexas como o Sistema de Autoridade Marítima, a segurança marítima, a investigação criminal marítima e o futuro preconizável para a autoridade do Estado no mar no atual quadro constitucional.
Sendo este espaço de ensino universitário por onde passaram os maiores vultos e pensadores do Direito, uma academia centenária aberta à reflexão, à investigação, ao estudo e ao debate científico, cremos que, uma vez mais aqui se fará história, se discutirão questões de constitucionalidade duvidosa que assomam a Polícia Marítima e o exercício da autoridade do mar.
Exmos. Senhores Deputados e demais representantes dos grupos parlamentares;
Exmo. Dr. Alberto Coelho, em representação de S. Exa. o Ministro da Defesa Nacional;
Exma. Senhora Secretária-geral do Sistema de Segurança Interna;
Exmo. Senhor Comandante-geral da Polícia Marítima, e demais dirigentes ou representantes das Forças e Serviços de Segurança;
Ilustres Senhores magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e representantes das respetivas estruturas sindicais;
Ilustres representantes da CGTP-IN, UGT, Sindicato de Oficias de Justiça, e Sindicatos e associações representativas de profissionais das Forças e Serviços de Segurança;
Ilustres representantes das Associações de Militares das Forças Armadas;
Exmos. Senhores representantes de outras entidade civis e militares;
Ilustres Oradores e moderadores;
Ilustres Convidados
Estimados Associados e demais profissionais da Polícia Marítima;
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Pela primeira vez se ousa debater com seriedade, com total liberdade intelectual um tema estruturante do Estado de Direito que tem sido hábil e intencionalmente arredado da comunidade jurídica, académica e judicial.
Refiro-me ao tema central da nossa 4ª Conferência, as questões de constitucionalidade da estrutura e organização da Polícia Marítima, dos direitos fundamentais dos seus profissionais e da sua interrelação com outras entidades que exercem a autoridade do Estado no mar.
Tendo presente o quadro legal originário da Polícia Marítima, criado em 1995 no SAM, na dependência direta do Ministro da Defesa Nacional, estruturado numa organização única para todo o território nacional nos precisos termos preceituados na Constituição, vemos hoje suscitarem-se dúvidas sobre a natureza da força policial e sobre a sua autonomia relativamente às Forças Armadas, por contraposição à conceção integradora da Polícia Marítima enquanto serviço da Autoridade Marítima Nacional.
Dúvidas essas que nos merecem a maior preocupação.
Desde logo porque sendo a Autoridade Marítima Nacional uma estrutura de coordenação de órgãos da Marinha, criada de forma artificial para legitimar a intervenção militar em matéria de segurança interna, não poderia esta estrutura coordenadora integrar no seu tecido orgânico uma força de segurança.
E foi prosseguindo um alinhamento político transverso assente num conceito pré-constitucional de duplo uso militar, ancorado em noções da teoria económica, economias de escala e sinergias incompatíveis em razão da natureza das suas missões, que a Polícia Marítima viu ameaçada a sua autonomia e a sua personalidade institucional por ação dos sucessivos Governos da República Portuguesa.
Refiro-me à redação dos Decretos-Lei nº 44/2002, de 02 de março, 233/2009 e 235/2012.
Nos termos daqueles diplomas, a Polícia Marítima constitui, não uma força de segurança, mas um serviço da Autoridade Marítima Nacional, enquanto instrumento ao serviço das missões particulares da Marinha, das suas competências alegadamente heterogéneas e capacidades multifuncionais, identificativas de componentes de ações tidas como não militares.
Imagine-se o que esta conceção permitiria se transportada para os restantes ramos das Forças Armadas: a inevitável militarização da segurança interna.
Esta hábil nublosa jurídica tem permitido à instituição militar obter acolhimento politico para sucessivas alterações á estrutura, organização e competências da Polícia Marítima, à revelia da legitimidade constitucional.
Será constitucionalmente admissível que uma força de segurança e polícia criminal se veja refém da instituição militar?
Será constitucionalmente aceitável que uma força de segurança veja a programação do seu investimento ser decidida e concretizada pelas Forças Armadas?
Será constitucionalmente admissível que o comando de uma força de segurança e órgão de investigação criminal seja provido a todos os níveis exclusivamente por militares da Marinha subordinados a uma Chefia militar e com normal progressão na carreira militar?
Em que medida aceitará a Constituição que a Polícia Marítima seja coordenada pela Chefia da Marinha em situação de normalidade democrática?
Que o chefe da Marinha exerça poderes disciplinares sobre a Polícia Marítima, avocando louvores e distribuindo recompensas?
Que o chefe da Marinha detenha competência hierárquica sobre o Comandante-geral da Polícia Marítima em matéria de gestão interna da Polícia?
Que o chefe da Marinha detenha legitimidade passiva para contestar ações judiciais sobre atos praticados pelo Comandante-geral da Polícia Marítima?
Estaremos nós perante uma Força de Segurança, ou um apêndice da instituição militar?
O tema que nos congrega hoje neste espaço universitário permitirá inferir ainda sobre a verdadeira supremacia da Constituição, enquanto princípio basilar do Estado de Direito.
Um tema que apontará com suficiente segurança para as evidências de inconstitucionalidade.
Que Estado de Direito se afirma como tal quando a autoridade do Estado, concede às forças armadas sob a capa artificial de uma organização civil, competências para patrulhar as praias e o mar territorial, para coordenar forças policiais, para fiscalizar atividades comerciais, lúdicas e turísticas, para recolher a identificação de cidadãos nacionais e estrangeiros, proceder a medidas de polícia, cominar a desobediência criminal e a utilizar armamento de fogo sob cidadãos, com o beneplácito dos órgãos de soberania?
Quando o dirigente máximo de uma Polícia se vê exonerado do cargo policial por proposta de uma chefia militar com base numa alegada conduta desleal, não estaremos nós perante uma inaceitável ingerência das Forças Armadas?
Qual é o limite do Constitucionalmente admissível?
Que Estado de Direito é este, onde a tutela governamental decide pela exoneração do dirigente máximo da Polícia Marítima a pedido da chefia militar da Armada, e remete os fundamentos da medida para mesma chefia militar?
Como convive o Estado de Direito com ordenações de tal gravidade, impensáveis numa sociedade hodierna, estruturada e organizada democraticamente?
Quando os direitos fundamentais dos trabalhadores das forças policiais: o direito ao trabalho em condições de dignidade; o direito à fixação de limites nas jornadas de trabalho; o direito a retribuição pela quantidade, qualidade e natureza do trabalho prestado; o direito a uma carreira profissional; o direito à igualdade, à negociação coletiva e à liberdade sindical se vêm politicamente arredados com base no argumento economicista escudados na tolerância política dos órgãos de vigilância constitucional?
De que valem as juras de fidelidade à Constituição quando por tolerância se permite tais desvio à lei fundamental?
Como diria uma ex-chefia militar, vários Governos e Presidentes da República conviveram bem com essa normas e não suscitaram dúvidas.
Pois bem. Não o fizeram os responsáveis políticos, mas fá-lo-emos nós aqui presentes, numa reflexão coletiva assente na contemporaneidade de 40 anos da nossa Constituição.
E termino dirigindo um especial agradecimento ao Exmo. General Loureiro dos Santos, que por razões de saúde não pode estar presente; ao Venerando Juiz Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro, que por imprevistos de última hora não poderá abrilhantar esta sessão; e uma palavra de imensurável gratidão aos oradores que acederam a partilhar algum do seu vasto conhecimento e ao juiz Conselheiro Bernardo Colaço, pela credencial intelectual que inculcarão na exigente reflexão que hoje aqui se fará.
Muito obrigado pela vossa presença.
Intervenção do Comandante-geral da Polícia Marítima
Exma. Senhora Procuradora, Secretária-Geral do Sistema de Segurança Interna
Exmo. Sr Dr. Alberto Coelho, em representação de Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional,
Exmos Senhores Deputados,
Exmos Senhores Juízes Conselheiros,
Exmos Senhores Magistrados do Ministério Público,
Exmos Senhores Almirantes ex-Comandantes-Gerais da PM,
Exmos Senhores Professores Romano Martinez e Bacelar Gouveia,
Exmos Senhores comandantes, diretores e chefes de órgãos de polícia e de polícia criminal,
Senhores representantes de organismos associativos e sindiciais,
Senhor Presidente e dirigentes da Associação Sócio-Profissional da PM,
Senhores membros da PM, e demais elementos de outras forças policiais,
Exmas Senhoras e Senhores,
Quero, desde logo, manifestar o meu reconhecimento por ter sido convidado a proferir umas palavras na abertura desta reunião magna da ASPPM, a qual conta com a participação de tão Ilustres palestrantes e conferencistas.
Atenta a matriz teórica desta 4ª Conferência sobre assuntos que a ASPPM identifica como de interesse relevante para a Polícia Marítima, e considerando o quadro das questões constitucionais que vão ser objecto de análise e de debate, entendo que é importante partilhar convosco a minha visão sobre alguns aspetos de avaliação, que penso serem fundamentais para uma boa percepção do que está em apreço.
Neste contexto, é basilar partirmos da premissa, que é correcta, que a reforma de 2002 não foi uma mera correção de cariz estético à orgânica da Autoridade Marítima, bem como é fundamental assentarmos em que a preocupação de constitucionalidade que estava expressa nas disposições preambulares do Decreto-Lei nº 248/95, de 21 de Setembro, que aprovou o Estatuto do Pessoal da Polícia Marítima (EPPM), não foi, igualmente, uma mera referência de estilo, antes essencial para a reforma e para a institucionalização do que a PM é hoje.
Tanto uma, como outra, inserem-se, claramente, num quadro evolutivo de construção desta secular Polícia, a qual, em 1995, ganhou, inegavelmente, um pendor definitivo neste seu caminho mais recente, mas já de décadas, de conceder à PM as capacidades, a identidade, o prestígio e o reconhecimento públicos que lhe são devidos, não apenas pela sua história mas, em especial, pela determinante importância que uma força policial com estas características tem, e deve ter, num Estado Costeiro como o Português, detentor do 19º espaço jurisdicional mais vasto do mundo, com amplas responsabilidades acrescidas em matéria de actos e medidas de fiscalização e de polícia, no âmbito da protecção e preservação do meio marinho e segurança da navegação. No fundo, a essência material de quase todas as funções que a CNUDM incumbe ao Estado Costeiro, cujo âmbito jurisdicional de actuação é, conforme resulta da lei, todo o espaço sob soberania e jurisdição nacional.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É, precisamente, atendendo a estas premissas, que correspondem a factos, que entendo não ser correcto falar-se, por exemplo, em “militarização da PM”, quando toda a opção legislativa assumida desde 1995 indica, claramente, o contrário de uma tal alusão. O artigo 3º do Estatuto da PM expressa, aliás, a materialidade do que acabei de afirmar, ao definir que à PM é subsidiariamente aplicável o regime da função pública, sabendo todos nós, também, que muitos dos 25 diplomas que já foram publicados e constituem o quadro normativo da PM, tiveram como suporte de comparativo a legislação aplicável à Polícia de Segurança Pública, e não a legislação estatutária militar.
Aliás, quando o legislador de 1995 enunciou, com toda a clareza, a preocupação de invocar o quadro constitucional, aquando da construção desta Polícia Marítima, fê-lo com a clara noção do que significa manter esta polícia de especialidade unida, e intrínseca e materialmente agregada à Autoridade Marítima, em cujo âmbito funcional, claramente, desenvolve a sua actividade e exerce as suas competências. Refutarmos isto não nos parece uma atitude intelectualmente honesta e levará, não tenhamos dúvida, a exaurir a identidade da PM, e a sua óbvia ligação à res marítima, e equivalerá, ainda, a votar ao abandono todo o labor construtivo de décadas, que se vem preocupando com o reforço da essencialidade desta Polícia, que é o apoio às gentes do mar, aos pescadores e aos nautas, e às comunidades marítimas, bem como a garantia da regularidade de todo o manancial de actividades marítimas e portuárias que actualmente se desenvolvem nos nossos espaços. Ora, isto é, afinal, o grande quadro de objectivos da Autoridade Marítima, e a razão determinante pela qual ela existe no ordenamento jurídico nacional há mais de 200 anos.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Isto nada tem de estranho, de peculiar ou de inconstitucional! O que revela, sim, à exaustão, é que o Estado entende que, na prossecção do interesse público que estabelece, é absolutamente determinante, e lógico, manter uma Polícia especial, com perícias e capacidades próprias, e com competências para executar, no quadro legal, acções e medidas cautelares e de polícia, a exercer a sua actividade num quadro institucional e material mais vasto que lhe dá sustentação funcional e razão de ser. O Estado, como detentor do poder público, assume esta Polícia – a nossa PM - numa base de lógica funcional, e não num qualquer comparativo orgânico, não deixando de lhe conferir um estatuto de grande especialidade, próprio do tipo de actividade policial, única, que exerce.
Nestas circunstâncias, não considero que a ligação da PM à Autoridade Marítima seja meramente institucional ou sequer instrumental, muito menos irrelevante; assim como não é irrelevante, por exemplo, a ligação da ASAE às questões da Economia, em cuja tutela se insere, e da Polícia Judiciária ao quadro da Justiça, em cujo âmbito departamental exerce as suas funções. Basta acompanharmos as notícias dos vários acontecimentos que têm ocorrido em Portugal ou na Grécia, para, facilmente, concluirmos que a PM é, hoje, uma marca identitária do Estado Português em tudo o que se reflecte na segurança da faixa costeira dominial, na protecção e preservação do meio e na segurança da navegação, até no salvamento e socorro marítimos, embora não seja esta a sua prioridade funcional.
A PM é absolutamente essencial ao exercício da autoridade pública do Estado nos espaços dominiais, balneares, portuários e em todo o espaço soberano e jurisdicional marítimo, e esta é, antes e agora, uma verdade irrefutável. Não há outra força policial que se possa confundir com a sua identidade, com o seu quadro de intervenção ou com o seu perfil de especialização e actuação profissional, ou com as perícias e meios náuticos e tecnológicos que detém, e que vimos construindo. E é precisamente esta sua muito significativa especificidade, que nos orgulha, que a afasta, em termos materiais, das demais forças policiais, pela qual eu, como Comandante-Geral, me tenho batido e me vou continuar a bater.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
A PM contribui, pois, indubitavelmente, para o exercício soberano da autoridade pública do Estado Português e é, actualmente, no modelo que temos, no contexto em apreço, uma Polícia de grande relevância funcional. Até porque, como resulta da lei, e em especial em matéria de proteção e preservação do meio marinho, sobretudo quando está em causa a fiscalização da atividade das pescas e toda a problemática da poluição do mar, a PM pode atuar até ao limite exterior da Zona Económica Exclusiva, o que lhe dá uma base caracterizadora específica em termos da intervenção jurisdicional face às outras polícias nacionais.
Neste contexto, é importante afirmarmos que, para um tal exercício de autoridade, é imprescindível à PM a utilização dos meios navais da Marinha no formato, e observados os modelos de cooperação, em que os mesmos são usados, por exemplo, pela Polícia Judiciária, pelos inspetores de pesca, no âmbito da NAFO e, no aplicável com o SEF, garantindo-se, desta forma, uma efectiva actuação em espaços jurisdicionais nacionais, que faça cumprir e impor a lei.
Sobre o exercício dos poderes policiais em tais espaços, a minha leitura é que qualquer outra opção adoptada para a PM será manifestamente pior e mais inadequada. Poderá corresponder, até, no limite, à desmaterialização estrutural e funcional da própria PM, podendo reduzi-la, por exemplo, a uma mera polícia de implantação portuária, o que seria uma ínfima expressão da sua matriz estruturante. Isto mesmo tenho reiterado aos órgãos directivos da Associação nas regulares reuniões de trabalho que temos mantido desde que assumi funções.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
No debate neste seminário não devemos confundir o âmbito de actuação da PM com o foro de intervenção dos Capitães dos Portos. Nunca o fiz, e já os meus antecessores haviam assumido esta visão, que tenho como certa. Não podemos, nem devemos, criar mecanismos de confusão entre o que é uma autoridade de perfil técnico-administrativo, com uma força policial. Contudo, nada disso está em causa, como, sinceramente penso, e já provei com as dezenas de Despachos que assinei e publiquei neste ano e quase meio que levo de comando da PM, bem como no reforço identitário que vimos conseguindo, com a total compreensão, validação e apoio da nossa tutela governamental. É, neste contexto, que não me parece ser relevante para as questões de constitucionalidade, invocar que são oficiais de Marinha que exercem as funções de capitão do porto e, portanto, no seu foro próprio, e nos termos da lei, de órgãos de comando da PM.
O facto de existirem, em várias áreas do ordenamento jurídico nacional, militares que, como os órgãos de comando da PM, exercem outras funções, que não as que se inserem no foro específico de actuação das Forças Armadas, deve ter uma leitura adequada, sistémica e enquadrada no propósito dos respectivos departamentos de Estado. É a lei, e as competências e missões que dela decorrem, que definem, qualificam a competência e o mandato, e não a qualidade profissional do cidadão. De facto, e a título exemplificativo, na Administração Interna, há militares a exercer funções na Guarda Nacional Republicana, na Protecção Civil e, em âmbito das Autarquias, nas estruturas municipais de Bombeiros. Na Autoridade Nacional de Segurança, também. E, na tutela do Mar, na Direção-Geral de Política do Mar, na Direcção-Geral de Recursos e Serviços Marítimos, entre outras entidades. Como encarar, então, esta realidade em termos de filosofia de empenhamento dos recursos do Estado? Será que por prestarem serviço fora das Forças Armadas, os militares deixam de ser bons no seu ofício e não conseguem desempenhar outras funções, pondo ao serviço do País a excelência das suas competências? Também será isto inconstitucional? O que fazem aqueles militares, muitos deles no activo, naquelas funções? Como entender esta aparente disfunção de análise? Não é, pois, perceptível esta dualidade de opiniões sobre uma mesma questão!
Nestas circunstâncias, não creio que se deva trilhar o caminho de afirmar que os militares estão impedidos de exercer um certo tipo de funções, como se fossem cidadãos que, além de terem restrições legais de exercício ao nível político-partidário, terão uma espécie de direitos de acesso restringidos ou de capacidades mitigadas para o exercício de determinados cargos na Administração Pública. Esse, sim, será um caminho com eventuais questões de constitucionalidade agregadas que, por serem facilmente enunciáveis, dispensam mais desenvolvimentos.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Também não me parece que a discussão clássica entre Segurança Interna e Defesa Nacional, em todas as vertentes que a mesma pode ocorrer, seja, em si, o móbil teórico que permita, em toda a sua latitude e amplitude, colocar em causa a lógica pública que visa racionalidade estrutural, optimização de meios e, sobretudo, uma indesmentível coerência funcional que esta construção da Autoridade Marítima Nacional e a sua dependência directa do Ministro da tutela, claramente, propiciam.
A lei identifica as premissas jurídicas do cargo de comandante-geral da Polícia Marítima, que competências detém, e de quem depende. A lei define que é ele o órgão superior de comando da PM e o seu dirigente máximo, pelo que não parece existir margem para se alegar que o poder superior de decisão quanto ao comando, direcção e gestão da PM não reside no comandante-geral, mas noutro nível qualquer. A expressão legal é clara e objectiva, quanto ao poder executivo para a prática dos actos e procedimentos de gestão da força.
Por seu lado, e como ente institucional de topo que encima o quadro de órgãos da AMN, a Autoridade Marítima Nacional não tem poderes efectivos de comando policial da PM, sendo, contudo, a sua configuração, um sucedâneo jurídico lógico, pelo facto dos Governos, desde há 14 anos, entenderem que não é possível manter uma estrutura de autoridade marítima, e, no aplicável, de Polícia Marítima, sem que exista uma fortíssima sustentação logística, em pessoal e material, por parte da Marinha, factor que hoje é, até, aliás, uma obrigação jurídica, por força impositiva do artigo 2º da Lei Orgânica da Marinha. A não ser que, muito inesperadamente, houvesse uma qualquer decisão política que entendesse reforçar a AMN com mais várias centenas de efectivos e poder despender mais quase duas dezenas de milhões de euros/ano para recriar, e manter, capacidades, estruturas, equipamentos e recursos num outro formato qualquer.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
A AMN, como tal, não é um cargo militar, nem nada na lei o identifica como tal, ou como sendo da Marinha. Se a leitura legal tivesse uma tal singeleza, a lei referia-se, simplesmente, ao Chefe do Estado-Maior da Armada, sem necessidade de mecanismos jurídicos adicionais, ou de construções legais específicas, como esta, da AMN. Ora, não é isso que o nosso ordenamento jurídico define. O que se estatui, muito claramente, está no nº2, do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 43/2002, e no artigo 2º do Decreto-Lei nº 44/2002, preceitos que devem ser lidos na forma que o legislador estabeleceu, e não naquilo que não enunciou. Aliás, é hoje expressamente claro, desde 01 de janeiro de 2015, pelo texto do artigo 41º da Lei Orgânica de Marinha, que os órgãos e serviços da AMN não são parte integrante da Marinha.
Creio, por isso, ser completamente inadequado persistir-se na ideia de que, pelo facto da AMN ser apoiada pela Marinha, a PM é um seu “apêndice”, a não ser que queiramos alcançar uma de duas finalidades: continuar a esgrimir com princípios abstractos, de forma a confundir pessoas menos conhecedoras dos enquadramentos legais e dos procedimentos vigentes; ou participar em debates, talvez mais académicos e dos foros filosófico e sociológico, lidando com argumentos e contra-argumentos sobre as várias abordagens que podemos ter às diversas questões, e aí, claro está, teremos toda a liberdade que o nosso raciocínio e quadros de apreciação permitirem.
Notem, V. Exas., que a PM não é uma estrutura da Marinha. Por isso, não tem perfil militar, não tem características estatutárias militares, não tem dependência militar e as suas missões e quadros de competência não são, nem nunca foram, militares. Estes são factos evidentes, indesmentíveis na sua formulação e na sua execução. Esta força policial não é uma qualquer forma de exercício de uma autoridade militar ou, como antes referi, um “apêndice” da Marinha. A PM, é, na exactidão dos termos expressos na lei, “uma polícia de competência especializada nas áreas e matérias atribuídas ao Sistema da Autoridade Marítima e à Autoridade Marítima Nacional”, sendo a sua especificidade funcional resultante do facto de, portanto, lhe estar cometida, em termos de actos, procedimentos e medidas de fiscalização e de polícia, a execução das competências que a lei comete à Autoridade Marítima Local.
Em síntese, a PM não é meramente instrumental; é, e continuará a ser, estruturante no exercício da Autoridade Marítima do Estado Português.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Concluo, referindo-me a um outro aspecto que me parece relevante para o tema deste seminário. Para isso, sublinho que, no seu longo percurso legislativo, já foram objecto de análise e aprovação parlamentar 5 Leis que, directa e indirectamente, resultam do preceituado no Estatuto da PM, e cuja matéria exigiu uma tal forma legal, pelo que, também neste aspecto, não me parece correcto afirmar-se – como se tem, por vezes, aludido - que o caminho da construção da PM tem sido feito à revelia da Assembleia da República e da sua validação jurídico-parlamentar. Não é crível, sequer pensável, que desde a primeira Lei publicada no quadro da PM, a 06 de Agosto de 1998, até à última, em Junho de 2015, ou seja, durante 17 anos, não se tenha, formalmente, concluído, que seria necessário inverter um tal caminho e, consequentemente, induzir toda uma restruturação nas bases que regulam esta Polícia!
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Podem haver discordâncias de pontos de vista, podem assumir-se entendimentos diversos sobre esta questão, podem até existir visões jurídicas não coincidentes sobre esta matéria, mas o facto é que o caminho percorrido tem sido inequivocamente claro e, pelo que indubitavelmente se comprova, validado pelos órgãos de soberania, pelo que não me parece correcto, a este propósito, aludirem-se, em permanência, questões de eventuais inconstitucionalidades.
A sedimentação de capacidades e perícias profissionais e materiais, nomeadamente a obtenção de mais e melhores meios humanos, náuticos e tecnológicos, bem como o reforço dos quadros legais estruturantes da PM é o caminho que se impõe que continuemos a trilhar com firmeza, coragem e galhardia.
Por isso, persistirmos em tais questões e eventuais inconstitucionalidades, significará um desvio desconexo, e que entendo como não adequado, àquele que deve ser o caminho para esta Polícia, que hoje é, claramente, uma Polícia Marítima com capacidades, com identidade, prestígio e reconhecimento na sociedade Portuguesa, e que continua a preencher o seu intuito último e a sua missão suprema: servir os Portugueses.
É para isso que, com abnegação, empenho e devoção, e na procura do interesse público, sempre actuaremos.
Obrigado.
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1º Painel

1º Painel:
"Polícia Marítima - Força de Segurança ou apêndice militar"
Oradores:
Juiz desembargador Antero Luís
Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia
Vice-Almirante Álvaro Cunha Lopes
Professor Rui Pereira
Moderador: Professora Doutora Célia Costa Cabral
Juiz Desembargador Antero Luís
Minhas Senhoras e meus Senhores
Antes de mais queria agradecer o convite que me foi formulado pela Associação Sócio Profissional da Policia Marítima e simultaneamente saudá-los por esta iniciativa.
Aliás, é a segunda vez que cá estou – esta como mero, diria, curioso, das questões de segurança – e vou-vos falar da relação das Forças Segurança com as Forças Armadas.
E para isso eu queria dizer-vos que, o melhor era voltar ao básico, e voltar ao básico é voltar à Constituição.
Eu ouvi aqui o Senhor Comandante da Policia Marítima, e acho que falou muito de Decretos, mas convém falar daquilo que é a base desses mesmos Decretos.
Eu falaria da Constituição e, só depois, faria uma abordagem das respetivas Leis de Segurança Interna e da Lei de Bases e Organização e Funcionamento das Forças Armadas, bem como Lei da Defesa Nacional.
E a verdade é que o artigo 272º da Constituição diz claramente que – para além de incluir a Polícia na administração pública – diz claramente que a segurança interna é uma das missões das Polícias, e aqui, polícias em sentido genérico, sejam elas as polícias com funções específicas, sejam as polícias na perspetiva da segurança, da ordem pública, sejam as várias polícias que nós temos ao longo dos vários ministérios e em várias situações.
Por sua vez, o artigo 273º da Constituição que nos fala de Defesa Nacional, diz-nos que a Defesa Nacional tem sete objetivos: garantir a ordem constitucional, garantir o funcionamento das instituições democráticas, a independência nacional, a integridade do território, a liberdade e segurança das populações, e a segurança das populações contra ameaças ou agressões externas. É esta a função da Defesa Nacional.
Obviamente que a Defesa Nacional está vocacionada para as ameaças externas.
E as Forças Armadas são uma componente da Defesa Nacional. Não são a Defesa Nacional. As Forças Armadas são a componente militar da Defesa Nacional, porque a Defesa Nacional é composta pela componente militar e por uma componente civil, onde se inclui toda a população nos mais variados aspetos que aqui não são relevantes.
E diria que, do ponto de vista constitucional, a Defesa Nacional não nos acrescenta muito sobre esta temática.
Mas a Constituição não ficou por aqui e contém uma norma específica sobre o papel das Forças Armadas do ponto de vista constitucional. E o artigo 275º da Constituição diz claramente, ao que aqui interessa, que as Forças Armadas asseguram a defesa militar da República, obedecem aos órgãos de soberania, colaboram nos termos da lei nas missões de proteção civil, colaboram nas missões de proteção civil e na satisfação das necessidades básicas das populações e na melhoria na sua qualidade de vida.
No fundo, diria que o legislador constitucional atribuiu às Forças Armadas uma componente social, e a componente social das Forças Armadas em matéria de segurança interna é exatamente isto que eu vos acabei de dizer.
Depois desse artigo específico das Forças Armadas o legislador consagra o estado de sitio e o estado de emergência, que a lei definirá os seus termos. Sendo certo, que a Constituição no seu artigo 19º, diz quais são as condições da restrição dos direitos, liberdades fundamentais decorrentes do estado de exceção, e portanto, toda a interpretação que se possa fazer daquilo que venha a ser a intervenção das Forças Armadas no estado de exceção terá que ser compaginável com o artigo 19º da Constituição.
Nós não podemos esquecer – e às vezes ouço estas coisas e penso que as pessoas se esquecem, o que a Constituição de 1933 estabelecia no seu artigo 53º, que atribuía às Forças Armadas essa missão, essa tarefa da manutenção da ordem e da paz pública – era esta a missão das Forças Armadas na Constituição do Estado Novo.
Esta visão da intervenção das Forças Armadas na segurança interna foi uma das primeiras preocupações do legislador constituinte. E daí esta preocupação de tirar as Forças Armadas da segurança interna e atribuir as questões de ordem pública, que são uma componente da segurança interna – ou seja, é um dos requisitos para o funcionamento da segurança interna, isto é para o cumprimento da missão, que se traduz em transmitir segurança ao Estado e às populações, a ordem pública é obviamente uma das componentes.
Portanto, esta teoria de que as Forças Armadas têm hipótese de intervir em matéria de segurança interna é, no fundo repristinar esta ideia da Constituição do Estado Novo no sentido de trazer as Forças Armadas para aquilo que não é a sua missão.
E portanto, diria que, em resumo, do texto constitucional para mim é absolutamente claro que tirando as funções sociais das Forças Armadas – que eu vos referi – não vejo como possa defender-se a intervenção das Forças Armadas em matéria de segurança interna.
Mas diremos todos nós, mudam-se os tempos, a ameaça é outra, os atores são outros, a realidade é outra, a perceção da segurança é outra.
Tudo isso é verdade e não é isso que está em causa.
Ou seja, todos nós sabemos que mudaram as ameaças, que mudaram os protagonistas e mudou a abordagem da segurança. Mas não é por isso que muda a constituição. Lamento dizer-vos. O que é preciso é que a gente adeqúe as nossas leis à Constituição e com algum esforço adequar à nova realidade na perspetiva da avaliação da ameaça e da resposta a essa ameaça. E penso que esse é que é efetivamente o grade desafio.
Tanto mais que, se vocês forem ver os limites materiais da Constituição, a revisão da Constituição não consagra nenhuma limitação material entre a defesa e a segurança interna.
Se forem ver os limites materiais do artigo 288º, não está lá nada dessa matéria. E, numa futura revisão constitucional se possa reequacionar esta matéria do ponto de vista político-constitucional e os órgãos de soberania alterarem esta realidade.
Mas dizia eu que mudou a perceção da ameaça, a própria ameaça, os atores, enfim, e a abordagem que se possa fazer no seu combate.
Nós também mudámos, o país também mudou e a resposta a tudo isso também mudou.
A Lei de Segurança Interna não é a mesma que era em 1987 e desde 2008 já tem alguns mecanismos que permitem alguma abordagem a essa nova realidade do ponto de vista da ameaça, assim como a Lei de base das Forças Armadas, da mesma maneira, e nesses dois mecanismos, para além da Lei de Segurança Interna ao prever a figura do Secretário Geral – a Senhora Secretária Geral está aqui presente – que permite desde a articulação entre as Forças Armadas e a Segurança Interna, via Secretário Geral – que aliás é uma norma repetida nas duas leis – portanto isso já é, diria um passo.
Mas a gente perguntará, mas porque é que o legislador não foi mais longe? Porque é que o legislador não densificou a articulação? Não disse, articulam desta forma, isto, isto e isto? Não foi porque constitucionalmente não é fácil conseguir desenhar uma norma que em respeito da Constituição permita essa articulação em termos legais. Isto é, acham que seria constitucional consagrar o chamado terceiro Estado, que, diria que é o “Santo Graal” desta matéria?
Porque toda a gente diz que em normalidade não há dúvida nenhuma que as Forças de Segurança tratam da Segurança Interna, as Forças Armadas tratam da defesa e das questões de ameaça externa, na perspetiva da defesa militar. Em estado de exceção também sabemos como é que se faz: a Lei determina quais são os mecanismos do estado de exceção, e o que é suspenso e o que não é suspenso e quem comanda como. Portanto, tudo isso está regulamentado. Mas periodicamente diz-se assim, bom ao chamar terceiro estado nem há condições para declarar o estado de exceção nem o estado de emergência, mas há aqui um nível de ameaça que justifica uma intervenção das Forças Armadas, e eu pergunto sempre, mas que estado é esse? Mas é possível nós termos cerca de cinquenta mil agentes das Forças e Serviços de Segurança – presumo que os militares serão sensivelmente os mesmos, não faço ideia, há-de ser sensivelmente o mesmo ou menos, Exército terá vinte e tal mil homens, corresponde a uma Força de Segurança – o que é que as Forças Armadas vão acrescentar? Só se for à “espadeirada” como no tempo do Saldanha, mas isso não é possível. Não se podem transformar as Forças Armadas, numa perceção de combate a uma manifestação ou a uma ação violenta qualquer com a lógica de funcionamento das Forças Armadas. É que à frente daquela entidade está um cidadão com direitos, não está o inimigo! Esse é o grande problema.
E portanto quando nós temos pela frente uma situação e anormalidade de segurança pública, em que o opositor e causador da insegurança têm direitos, temos que, obviamente, respeitar os seus direitos.
Ora, as forças militares quando estão no teatro de operações, e é para isso que elas são treinadas, não têm um cidadão. Têm um inimigo num contexto militar. E o uso da força, seja mesmo da força letal, não tem problemas do ponto de vista ético, nem jurídico.
Então como faríamos na segurança interna? Que é a pergunta que se põe. Dava-se formação às Forças Armadas para lidar com a ordem pública como tem as Forças de Segurança? E transformávamo-las numa força de segurança suplente? A GNR costuma dizer “para isso estamos cá nós”, que é no fundo a lógica da GNR, para isso estamos cá nós, militares somos nós e portanto, isso é connosco.
Acho que há aqui algumas questões que me parecem que são postas fora do contexto daquilo que é o enquadramento constitucional.
Mas já se deram passos, porque estas duas leis que vos referi permitem, e há ali uma norma curiosa que está na Lei de bases, organização e funcionamento das Forças Armadas e na Lei de Defesa Nacional, em duas alíneas que lá estão em dois artigos, que é as Forças Armadas colaboram com as Forças de Segurança no combate das ameaças transnacionais – penso que é esta a expressão, estou a citar de cor.
Mas o que é isto de combate às ameaças transnacionais? O que é isto?
Um terrorista que venha da Argélia é uma ameaça transnacional. Chega a Lisboa, não é – saiu da Argélia radicalizou-se lá – fez-se explodir em Lisboa e as Forças Armadas teriam intervenção nisto? Isto é possível?
Mas acham que do ponto de vista constitucional isto seria possível? Eu não acredito.
Aliás, até acredito mais que qualquer ação que um agente militar – que não seja um agente de uma Força de Segurança – fizesse, imediatamente o homem era solto. Logo no primeiro interrogatório, porque aquilo era um ato ilegal. A não ser em flagrante delito. Em flagrante delito até qualquer cidadão, e o problema não se colocaria.
Porquê? Porque lhe falta autoridade.
Mas para além deste problema há sempre um outro problema, que é o problema da unidade comando. Mas quem comanda? Querem as Forças Armadas a serem “bodyguards” das Forças de Segurança? Isto é, à francesa? Se as Forças Armadas quiserem, se a autoridade estiver no agente de segurança que está junto de dois militares, e ele é quem a exerce, provavelmente é constitucional. Não tem problema nenhum. O que as autoridades militares ali farão é, no fundo, apenas e só, a presença física no sentido da dissuasão. Nada mais do que isso. A autoridade é do agente de segurança.
Aliás, discutiu-se muito e penso que fundadamente a questão dos militares em Santa Luzia, em Viana do Castelo, se estão recordados, no combate aos fogos. Os militares todos os verões fazem uma fiscalização da mata de acordo com um convénio que têm, e que estará no âmbito daquilo que se pode dizer, enfim, proteção civil, uma coisa enfim vaga, mas esqueçamos isso. Admitimos que até está, não é por aí que o mal vem ao mundo. Mas, pelos vistos alguns desses militares durante algum tempo pediam a identificação às pessoas que se deslocavam à mata. Ora isto não é possível porque um militar não tem autoridade para pedir a identificação às pessoas. Basta ler a lei. É que nem é preciso ir à Constituição.
A que propósito é que um militar pede a um cidadão, que tem liberdade de circulação nos termos constitucionais, a sua identificação para ir a um lugar público? Obviamente isto não é possível.
E se amanhã eventualmente um militar numa situação dessas criasse um problema com esse cidadão, obviamente haveria um problema do ponto de vista da legalidade de atuação.
Nós normalmente somos todos muito criativos, quase todos, e os militares não são menos. Os militares começaram a construir uma teoria que começou na Marinha - aliás o Senhor Almirante Comandante da Polícia Marítima é um dos seus mentores, se não mesmo o seu autor, que é o chamado duplo uso, e o duplo uso tem servido para muitas variadas coisas, mas o duplo uso tem um problema é que só serve mesmo para os meios, não serve mesmo para mais nada, porque no dia em que nas águas territoriais portuguesas, isto é em solo português o militar faça qualquer tipo de intervenção sem estar resguardado, está a agir à margem da Lei. Não há dúvida absolutamente nenhuma. E portanto, seja no tráfico de droga, seja naquilo que for, não pode fazê-lo. E fá-lo se tiver a bordo alguém de uma Força de Segurança ou de uma Polícia. Aí obviamente, mas o uso dos meios que está consagrado – aliás fala-se da interoperabilidade dos meios e fala-se do uso dos meios, da partilha de meios, que está consagrado na Lei de bases e na lei de Defesa Nacional – é provavelmente um bom caminho mas é mesmo só para usar os meios. E mesmo esse uso de meios tem de ser feito via Chefe de Estado Maior e Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna.
Eu era Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna e houve um incidente na foz do rio Mira, no Alentejo, em que os Fuzileiros entraram em tiros por causa de uns traficantes – aliás, um dos quais veio a falecer – quando a situação estava a ser monitorizada, se não me falha a memória, pela GNR ou por outra força de segurança. ~
Ou seja, esta ideia de querer fazer coisas que estão fora do âmbito, ali só não deu mortes por uma questão de sorte. Nitidamente uma questão de sorte. Normalmente o que pode acontecer é que, como as Forças Armadas não sabem o que as policias andam a fazer, nomeadamente em matéria de droga onde, nesses grandes mecanismos a Polícia Judiciária tem um papel de coordenação, e a partir de determinada altura está tudo misturado, e em vez de termos ganhos temos perdas.
E portanto, eu diria que temos de ser muito prudentes mesmo nesta questão do uso dos meios sem ser ao nível de topo. As pessoas dirão, mas o que é que o Secretário-Geral e o CEMGFA têm a ver com a investigação criminal? E eu digo sempre: nada. O que eles têm de saber é que há operações em curso. Não têm que saber o que está no processo, nem têm que saber quem é o suspeito, quem é o arguido, ou se vão tratar de heroína, ou cocaína, ou de haxixe, ou outra coisa do género. Não é disso que estamos a falar. Esta ideia de que quem coordena não pode saber – o que aliás só depois desse incidente é que se percebeu que havia um acordo entre a Polícia Judiciária e o Comando Naval da Lisboa para a utilização dos meios, nem passava pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, mas pelo Comando Naval de Lisboa. Havia uma coisa muito sui generis, que era quase como se houvesse um acordo entre a primeira secção da brigada de estupefacientes e a primeira secção do combate de crime económico e financeiro, e o Diretor da Polícia não soubesse, e portanto, ninguém sabia, nem sabia o Chefe do Estado-Maior, nem ninguém sabia de nada. Portanto eles lá se entendiam e faziam, nem deram conhecimento a ninguém, o protocolo tinha sido feito obviamente antes da Lei de Segurança Interna estar em vigor. Mas isso para vos dizer que é preciso muito cuidado quando se fala destas matérias e quando se aborda isto de uma perspetiva do combate, porque às tantas as questões em vez de se resolverem complicam-se.
Bom, mas há aqui uma outra questão. É que, como não há coragem para fazer consensos, para discutir uma abordagem integrada desta matéria do ponto de vista constitucional, que era aí que ela devia ser feita – ou seja, eventualmente haver uma discussão constitucional se deve haver uma consagração no texto constitucional do conceito nacional de segurança, e portanto, haver uma nova abordagem para o conceito de segurança nacional e em substituição do conceito estratégico de defesa, em vez de discutir isto. Nessas medida o que é que se faz? Põem-se os académicos a discutir isto do ponto de vista académico e é uma solução. Mas depois como os académicos fazem coisas normalmente bem-feitas, que também é a missão deles, é para isso que eles são académicos, conseguem influenciar alguns políticos, e alguns políticos acham que aquilo está bem. Foi o que aconteceu na última discussão do conceito estratégico, porque se virem a proposta inicial, verdadeiramente era um conceito de segurança nacional que a Constituição não consagra, onde se incluíam matérias de segurança interna nitidamente, e que não podem estar lá incluídas ao nível até da coordenação das forças – porque não houve a coragem de fazer a discussão do ponto de vista politico, que é onde ela deve ser feita, porque os servidores do Estado são servidores do Estado e não são legisladores. E é o legislador, e o legislador constituinte, quando a assembleia assume poderes de revisão que deve fazer a discussão politica, e que tendo em conta toda esta nova realidade do ponto de vista global com que nos enfrentamos, fazer a discussão a ver se faz sentido hoje retirar novamente as Forças Armadas dos quartéis – que era a velha expressão na revisão de 1982, que era remeter as Forças Armadas aos quartéis, com a extinção do Concelho da Revolução, no fundo, a grande mudança no texto constitucional – e voltar novamente a equacionar, do ponto de vista constitucional, qual o papel das forças Armadas e em que termos é que elas podem intervir em matéria de segurança interna.
E esta discussão tem de ser feita porque, como vos digo, não há nada nos limites materiais da revisão da Constituição que impeça um avanço para um conceito de segurança nacional. Não há problema do ponto de vista constitucional. E essa discussão pode ser feita.
Feita essa discussão e consagrado o conceito de segurança nacional, esclarecida do ponto de vista constitucional os termos da colaboração entre as forças Armadas e as Forças de Segurança – e eu digo esclarecido porquê? Porque a pior coisa que poderia acontecer era haver uma norma em branco. Ou seja, se o texto constitucional disser apenas que as Forças Armadas colaboram na segurança interna nos termos previstos na Lei. Cada vez que muda o Governo nós temos um problema. E isso é que eu não acho que seja boa política. E o legislador constitucional vai ter que ter a noção e fazer uma discussão aprofundada para tentar meter no texto constitucional porque o assunto é de tal modo importante que não pode mudar em função do que mudam os governos – quais são os contextos dessa colaboração, densificando aquilo que não fez na Lei de segurança interna, nem na lei de defesa nacional nem na LOBOFA.
E é esta realidade que se impõe ao legislador.
Espero eu que no dia que a discussão se faça chegue ao ponto que eu vos estou a falar. Ou seja, que permita a estabilidade do ponto de vista da colaboração, porque essa estabilidade é importante a dois níveis: é importante do ponto de vista de quem cumpre e é importante na perspetiva dos meios e da programação dos meios, seja de equipamentos seja da restruturação das Forças Armadas e das Forças de Segurança, obviamente, porque nessa altura provavelmente pode-se reequacionar o que fazer nas Forças de Segurança. Também não é um assunto que esteja fechado. Nada impede que daqui a vinte anos haja uma única polícia. As pessoas às vezes pensam que isso é impossível, mas não é impossível. E não me parece que seja difícil de fazer uma coisa dessas. Que no fundo permita que toda a restruturação que venha a ser feita em função disso tenha estabilidade, porque nós não podemos estar a mexer, propriamente, todos os dias nestas matérias e estar aqui a criar entropias no sistema.
Feito isso passemos à fase seguinte e reequacionemos então quer o modelo de segurança interna, quer, eventualmente, o modelo de defesa.
Agora tentar reequacionar os modelos com as balizas constitucionais e depois vir dizer que não há nenhum problema constitucional, dizendo, no fundo, que a Constituição é assim uma coisa que não tem muita importância, é que me parece que é muito problemático.
Eu diria que o grande desafio dos próximos tempos, penso eu, será conseguir do ponto de vista de uma revisão constitucional, debater estas matérias e conseguir fazer a consagração de algo que permita alterar, ou não, o sistema, porque é isso que se impõe. Porque mesmo o sistema de segurança interna tal como ele é hoje, que resulta da lei – enfim, obviamente tem enquadramento constitucional – mas penso que deveria ter estabilidade e essa só se consegue se ele tiver consagração constitucional expressa. E depois de feito isso penso que seria altura de facto de eventualmente reequacionar os sistemas e deixarmo-nos de andar aqui a fazer com que, diria “encanar a perna a ré” porque todos nós sabemos onde o problema está mas ninguém o quer assumir.
Aliás ouvi o discurso do Senhor Comandante da Polícia Marítima e de facto percebe-se que os grandes problemas, no fundo, as grandes questões que tinha feito o dirigente da Associação Sócio Profissional, ele pensa que se resolvem com os diplomas que existem, mas não resolvem. Obviamente que não resolvem e basta estar um pouco atento para perceber que não se resolvem.
Acho que os problemas são mais vastos do que isso e nós não podemos ter discursos piedosos sobre estas matérias. A pior coisa que podemos fazer é ter discursos piedosos, está tudo bem e tal, assim uma coisa… Isso é que não. Isso é que não, manifestamente.
E diria que isto que, na minha perspetiva, isto deveria ser feito em matéria da intervenção das Forças Armadas, em matéria de segurança interna e das relações entre as Forças Armadas e as Forças de Segurança.
Muito obrigado
Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

(em edição)
Vice-Almirante Cunha Lopes

Falar da Polícia Marítima e do seu relacionamento com os órgãos da AMN, numa abordagem de rigor, frontalidade, transparência e racionalidade, obriga, no mínimo, a uma breve alusão às raízes históricas da Polícia Marítima, a sua evolução ao longo dos tempos e, uma reflexão sobre o papel chave que a Marinha, enquanto ramo das Forças Armadas, tem protagonizado neste processo.
Sem rodeios, iniciamos esta abordagem com a conclusão objectiva de que a actual situação em que se encontra a PM, do ponto de vista do seu enquadramento jurídico-constitucional, é, em grande parte, o produto do confronto de posições, ao longo dos tempos, entre os que se entrincheiraram na defesa da tradição histórica secular, que procura perpetuar poderes por muitos julgados ilegítimos à luz da actual Constituição, numa linha de continuidade de um regime de militarização do mar, e aqueles, que numa visão actualista, defendem a sua evolução no sentido estrito do respeito pela Constituição e pelas leis da República, enquanto imperativo de um Estado de Direito Democrático. Esta corrente de pensamento actualista, que coloca o cidadão no centro da actividade policial, rejeita, naturalmente, que uma força policial esteja subjugada ao poder de controlo e direcção de um poder militar, representativo de um regime musculado de polícias militarizadas, que vigorou no passado, e que perspectivava um modelo de relacionamento com o cidadão, na sua acção preventiva e repressiva, baseada na tese do “inimigo interno”, conceito banido pela actual Constituição e pela primeira vez na história do constitucionalismo nacional.
Assumir este confronto, é, antes de mais, trazer à colação o, por demais debatido, tema da separação em Títulos diferentes, das questões relativas, à Administração Pública e Polícia (Título IX), por um lado e, à Defesa Nacional e Forças Armadas (Título X) por outro, que a 1ª revisão Constitucional de 1982 consagrou, e que representa o corolário do princípio da supremacia civil assumido pelo legislador constitucional de que, quanto à Segurança, como fim do Estado e como pressuposto do exercício da sua autoridade, existe a dimensão interna e a dimensão externa, enquadradas por conceitos, estruturas e regimes diversos.
Assim, numa abordagem simples sobre a questão, tão em voga, de que a nova conjuntura de segurança internacional fez emergir um novo conceito sobre a tenuidade da fronteira entre segurança interna e defesa, um olhar de relance sobre as missões das FAA, como estipulado no artigo 4º da LOBOFA, diz-nos que “incumbe às FAA, cooperar com as FSS, no combate a agressões ou ameaças transnacionais”.
Este articulado limita esta cooperação civil-militar ao combate a agressões ou ameaças transnacionais, e o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, identifica como os principais riscos e ameaças de natureza global (transnacional), o terrorismo, a proliferação de armas de destruição massiva, a criminalidade transnacional organizada, a cibercriminalidade e a pirataria. Apesar do Conceito não ter força de lei, representa um indicador credível sobre as matérias balizadoras da cooperação civil-militar – ou seja, num espectro de actividades ilícitas que possam prejudicar o interesse nacional ou constituir mesmo ameaça à segurança nacional, que varie desde meros ilícitos de ordenação social até às ameaças contra a soberania, independência e integridade territorial do Estado, este poderá ser o bloco de ameaças que justifica uma cooperação civil-militar para uma resposta mais consistente e robusta, num ambiente em que, apesar da gravidade da situação, não justifique o recurso à declaração do estado de sítio.
Outra coisa é o ramo naval das FAA, impor-se como instituição dotada de poderes públicos, e não apenas de capacidades, para exercer a autoridade do Estado no mar, fora deste contexto de cooperação civil-militar, quando a própria lei que designa por “autoridade marítima” o poder público a exercer no mar (Art.3º, DL 43/2002), exclui a Marinha do elenco de entidades que exercem esse poder público (art.7º).
Assim, numa situação de normalidade institucional, temos forças militares integradas nas FAA, por exemplo, a assumir competências no mar para fiscalizar eventuais infracções de mera ordenação social, que apesar de poderem configurar condutas socialmente intoleráveis, nem sequer têm dignidade penal, quanto mais, constituírem ameaças transnacionais. Exercer estas funções de natureza inspectiva a bordo das embarcações, próprias de polícia administrativa, ou então, de inspectores administrativos, é correr riscos imprudentes de contencioso, na medida em que os militares em serviço nas FAA, não estão investidos do poder de imposição da lei (autoridade pública/policial), por se tratar de matéria do domínio civil.
A fundamentação para este posicionamento institucional assenta na tradição histórica secular dos militares da Armada com poderes de autoridade marítima, paradigma que a fracturante 1ª Revisão Constitucional fez ruir ao instituir uma nova ordem jurídico-constitucional, a que se juntaram argumentos de economia de escala e racionalização de meios, e a invocação do direito internacional “de per si”, sem o conjugar com o direito interno, e que formularam o tão propalado conceito doutrinário de “duplo uso“. Na prática, este conceito, que tem modelado o pensamento interno e exercido uma forte influência na relação da Marinha com o poder político, que se tem deixado capturar por essa hipotética racionalização, e por vezes até o judicial, é indutor de grande resistência à mudança, do que resulta oposição ao crescimento e desenvolvimento da PM, quer em termos de dimensão quer de afirmação da sua autonomia técnica-funcional como força de segurança, colocando-a num estado de definhamento.
Este conceito, tal como tem sido interpretado e interiorizado pela Marinha, ao impedir a projecção da PM para o mar, mais não fez do que abrir as portas à dispersão e duplicação de competências no mar, na sequência da adesão de Portugal ao espaço Schengen, quando o país teve que assumir o compromisso, que lhe foi imposto, de ter uma força policial a vigiar e controlar a fronteira marítima, agora fronteira externa da União. Esta situação gerada, de ter duas forças policiais a disputarem o mesmo espaço entre si e um ramo das FAA a disputar competências de natureza policial, augura-se pouco sustentável no tempo, não por causa da duplicação de meios, que continuam escassos, mas por força da fragmentação, dispersão e sobreposição de responsabilidades (legítimas e ilegítimas), que são factores potenciadores de ineficácia e conflitualidade permanente, com o consequente descrédito para o Estado. Este contexto de imprevisibilidade, coloca a PM, atento o seu estado de definhamento, numa situação de fragilidade e de incerteza quanto ao futuro.
Vejamos agora, numa pequena viagem pelo tempo, alguns dos marcos determinantes na evolução da PM, mas também demonstrativos do ambiente integrador em que essa evolução se foi processando, ao longo do tempo, daqui inferindo as raízes profundas (root causes) da tradição histórica secular.
Desde logo em 1919 (Lei nº 876), ao ser criado no porto de Lisboa, um Corpo de Polícia Marítima, chefiado por um oficial de Marinha e destinado a exercer o policiamento geral na área de jurisdição do Departamento Marítimo do Centro, foi na Armada, que foi recrutado o seu efectivo de 20 praças, denominadas “cabos de mar”, a que juntou dois agentes da polícia de investigação criminal de Lisboa, em regime de destacados. Ainda nesse ano (Decreto nº 6 273), este conceito foi alargado ao Corpo de Polícia Marítima do Douro e Leixões.
A aprovação do novo Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, em 1943, vem claramente consignar os deveres da Marinha Mercante para com a Armada, sobretudo no mar e em portos estrangeiros, tendo-se em consideração que os navios da Armada constituem sempre uma afirmação da soberania nacional.
Nos portos, a competência para exercer a acção disciplinar relativamente à Marinha Mercante pertencia aos capitães dos portos, e nos portos, enseadas ou baías onde não houvesse essa autoridade marítima, aos comandantes dos navios de guerra.
A competência para conhecer e julgar todos os crimes marítimos e puníveis por este Código, estava reservada aos Tribunais Marítimos, que funcionavam nas Capitanias dos Portos, e eram constituídos pelo Capitão do Porto, que presidia, um outro oficial da Armada e um Capitão da Marinha Mercante, embora nos julgamentos de crimes puníveis com penas maiores (prisão celular ou degredo), o 2º vogal seria substituído por um juiz togado (de direito).
Este Código aplicava-se a todos os inscritos marítimos, quando no exercício das suas funções ou em virtude delas e a todos os indivíduos não inscritos, se dentro da área de jurisdição marítima exercessem actividade que se relacionasse com a vida de bordo (ex. estivadores, pessoal dos estaleiros, etc.).
Entretanto, em 1946, (DL nº 36:081), a PM adquire estatuto civil ao integrar o então criado “Quadro do Pessoal Civil do Ministério da Marinha” (QPCMM), embora ficando sob a alçada do regulamento disciplinar da Armada na parte aplicável a militares.
O Ministério da Marinha, estruturado em dois ramos, “Fomento e Armada”, em 1969 sofre uma reestruturação (DL nº 49078), em que é criada a “Direcção-geral dos Serviços de Fomento Marítimo” (D.G.S. F. M.), no ramo do fomento, tendo como atribuições, todas do foro civil, os assuntos relativos às marinhas de comércio, de pesca e de recreio, às pescas, faróis, socorros a náufragos e ao domínio público.
A Polícia Marítima, nesse documento, classificada como “o instrumento preventivo e repressivo de que dispõem as capitanias dos portos” tem como missão, assegurar o cumprimento das leis e dos regulamentos marítimos e o policiamento geral nas áreas de jurisdição marítima, cumprindo-lhe ainda a investigação dos crimes sob a alçada do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante e, nos termos do Contencioso Aduaneiro, a repressão do contrabando.
Em 1972, é aprovado um novo Regulamento Geral das Capitanias (RGC), (DL 265/72) que cria na dependência do capitão do porto, o “Serviço de Policiamento Marítimo”, com a finalidade de colaborar na prevenção da criminalidade, assegurar o cumprimento das leis e regulamentos marítimos e efectuar o policiamento geral na área de jurisdição da capitania. Para o efeito, este serviço de policiamento, para além do pessoal do Corpo de Polícia Marítima, dispunha dos cabos-de-mar e dos militares da Armada, designados, a título temporário, para desempenhar este serviço de policiamento, e na falta de pessoal, poderia o Capitão do Porto, ainda recorrer ao pessoal do troço de mar do QPCMM. Este conceito, perdurou até à actualidade, com reforços temporários da PM por pessoal militar, com um despacho singular do CEMA.
Este foi o modelo de autoridade marítima que imperou no século XX até à Revolução de Abril de 1974, de onde se extrai uma estrutura fortemente militarizada, em que sobressai a figura do capitão do porto, um militar de carreira naval, que para além dos poderes administrativos, policiais e até legislativos, por força dos Editais, ainda dispunha de competência disciplinar e judicial/penal, sobre os trabalhadores marítimos. Mas os próprios comandantes dos navios de guerra, para além de poderes de policiamento no mar, em certas circunstâncias, tinham poderes de disciplina sobre os marítimos. Objectivamente, serão estes os elementos constitutivos que estarão na génese de uma tradição histórica secular, que sustenta uma cultura, muitas vezes apresentada na forma de doutrina institucional.
As profundas alterações orgânicas, operadas após o 25 de Abril de 1974, acabaram com o Ministério da Marinha, passando o ramo Armada a integrar institucionalmente as FAA, no âmbito do Ministério da Defesa Nacional (MDN). Por sua vez, o ramo do fomento marítimo, como que implodiu, e entre outros, os assuntos da marinha mercante e das pescas passaram a ser tratados em departamentos governamentais criados para o efeito, fora do MDN. Ficaram, no entanto, questões no âmbito da autoridade marítima que se mantiveram na esfera da Marinha, assumindo a natureza de serviço público, de interesse público, para se diferenciar dos assuntos de carácter militar naval, como se estes não fossem também um serviço público e de interesse público.
Os factos provam o grau de dificuldade acrescida e resistência ao processo de assimilação e adaptação à nova ordem jurídico-constitucional, no que à autoridade marítima diz respeito. Por exemplo, apesar da Constituição considerar os tribunais como os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça, algumas normas prescritas no RGC (art.206º e 209º), que davam competência ao Capitão do Porto para decidir litígios previstos nesse regulamento, só após uma declaração de inconstitucionalidade das normas, pelo Acórdão 178/86 do Tribunal Constitucional, de 27 de maio, é que essa competência transitou para os tribunais.
Em 1975, em pleno advento da institucionalização da democracia, o Conselho de Chefes dos Estados-Maiores das FAA, aprovou o “Quadro do Pessoal dos Serviços de Polícia e de Transportes da Marinha” (QPSPTM) (decreto-lei nº 190/75), com pessoal oriundo do QPCMM, transitando do estatuto civil para o estatuto de militarizado, sem que este fosse definido com clareza. O Corpo de Polícia Marítima, integrou esse quadro, a par com os Cabos-de-mar, que constituíam o pessoal da acção fiscalizadora e de polícia prevista no RGC e demais legislação em vigor. Esta lei colocou todo o pessoal militarizado sujeito ao foro militar (art.4º, alínea 2), o que inclui, para além do Regulamento de Disciplina Militar, o Código de Justiça Militar.
O Conselho da Revolução, em 1976, altera este quadro (Decreto-lei 282/76) que passa a designar-se por “Quadro de Pessoal Militarizado da Marinha” (QPMM), integrando novos grupos de pessoal civil oriundo do QPCMM, com a alegação de que a natureza das funções que desempenham e, muito em particular, os horários de trabalho que praticam, os coloca em situação idêntica à do pessoal militar.
Importa relevar que em 1983, já depois da 1ª revisão Constitucional, o governo viu-se na necessidade de aprovar um diploma interpretativo (decreto-lei 392/83), em que assume objectivamente correcta a sujeição dos militarizados da Marinha ao foro militar. Este contencioso, só viria a ter um fim em 1990, com a declaração de inconstitucionalidade da norma, com força obrigatória, pelo Acórdão nº 308/90 do TC, sem que antes, o governo não tivesse aprovado novo diploma, em 1984, (decreto-lei 337/84), no mesmo sentido do diploma interpretativo anterior.
Entretanto, em 1984, a DGSFM é extinta (decreto-lei 300/84) dando lugar ao sistema de autoridade marítima (SAM), na dependência directa do Chefe do Estado Maior da Armada (CEMA), com a finalidade de garantir o cumprimento da lei nos espaços marítimos sob jurisdição nacional. Ou seja, dois anos após a 1ª revisão constitucional, órgãos e serviços da natureza civil são integrados num ramo militar. Só em 1991, pela 1ª vez, o SAM foi colocado na dependência directa do MDN (decreto-lei 451/91), embora com a prerrogativa de delegação no CEMA.
A publicação do Estatuto do Pessoal da PM, em 1995 (decreto-lei 248/95), institucionalizou a Polícia Marítima, enquanto força policial e criminal, dotada de competência especializada, com uma organização única para todo o território nacional, integrando assim o quadro constitucional e legal que rege as FSS.
Este instrumento jurídico contraria qualquer perspectiva de territorialização da segurança marítima, na sua vertente “maritime security”, a qual visa a consecução dos fins inerentes à política de segurança interna nos espaços marítimos, que em termos constitucionais cabe às forças de segurança, com competências de órgão de polícia criminal e não a uma mera polícia administrativa local, como presumido pelos serviços de policiamento marítimo, das capitanias.
Não obstante este avanço no sentido da afirmação e autonomia técnico-funcional da PM, os efeitos positivos desta iniciativa legislativa foram cerceados em prol de perpetuar a militarização do mar, através de uma prática ardilosa de construções jurídicas confusas, a que muitos chamam nevoeiro legislativo. É o caso do acervo legislativo de 2002, que cria um novo conceito aberto de SAM, no qual se integra, de forma distinta, a AMN e a PM, (DL43/2002), e, assim, ao autonomizar a PM, identificar e estatuir com especificidade própria, a função policial marítima, mas logo contrariada com nova disposição legal que coloca a PM, operacionalmente, na estrutura operacional da AMN (art.3º, DL 44/2002), minando esta autonomia funcional.
Num despacho do MDN, exarado em março de 2012, que antecede a feitura do DL 235/2012, de 31de outubro, é reconhecido que a PM corresponde a uma estrutura específica, com autonomia técnico-funcional total e identificação institucional e legal própria, que integra o SAM ao lado da AMN. No entanto, este diploma, não só não respeitou este princípio enunciado, ao integrar a PM na estrutura da AMN, como ainda alargou os poderes do órgão AMN, dotando-o de competências para coordenar actividades que possam envolver o CGPM, de legitimidade passiva nos processos jurisdicionais e do poder para decidir recursos hierárquicos de actos administrativos praticados pelo Comandante-geral, sujeitando-o assim ao poder hierárquico daquele órgão, quando o mesmo diploma estatui que o Comandante-geral é o dirigente máximo da PM. Como o AMN é por inerência o CEMA, desta forma ardilosa, a PM fica sujeita à hierarquia militar.
A questão mais significativa, em termos jurídico-constitucionais, entende-se mesmo, éa “inerência de funções”, em que um alto cargo de chefia das FAA (CEMA), automaticamente, vincula competências do foro civil, como dirigente de topo de uma estrutura (AMN) da Administração Pública e, ainda por cima, na qual se insere uma força policial (PM). É mesmo crítico entender, entre outros aspectos, como é que uma entidade que não é autoridade de polícia, nem órgão de polícia criminal, nem autoridade judicial, possa coordenar operações de natureza policial. Esta ingerência militar na acção policial marítima, motiva falta de confiança na relação da PM com as outras FSS, nacionais e europeias, quando a confiança é factor determinante para a partilha de informações policiais. A não inclusão da PM na Unidade Nacional CEPOL, ligada à Academia Europeia de Polícia, é disso prova objectiva. Uma unidade nacional que visa reforçar a cooperação entre polícias, em questões como o terrorismo e o crime organizado, só pode dispensar uma força policial que actua no mar, por motivos de confiança, já que não está afastada a probabilidade de ocorrência destes crimes por via marítima. Mas também prova que o MDN, vocacionado para os assuntos de defesa e das FAA, mas que tutela a PM, não está focado nos assuntos de segurança interna, nem demonstra capacidade e vontade para entender e promover o regime que deve imperar numa força de segurança.
O que está em jogo é a necessidade de uma visão política que defina um modelo de autoridade do Estado no mar, consistente e eficaz, que respeite a lei constitucional e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E se a decisão política, como desejável para o interesse público, for eleger a PM como a principal agência de imposição da lei, nos espaços marítimos, reservando para a Marinha o apoio às autoridades civis competentes e a disponibilização de recursos, então, é urgente rever a dimensão desta força de segurança e dotá-la dos instrumentos jurídicos estruturantes (lei orgânica, estatutos, sistema remunerativo, orçamento, etc.), para uma consolidação sólida da justificação da necessidade e da sua existência.
Parafraseando Confúcio, saber o que é correcto e não o fazer, é falta de coragem.
Professor Rui Pereira
Em edição
2º Painel
Professor Doutor Garcia Pereira
Em edição
Deputado da Assembleia da República Jorge Machado
Em edição
Professora Doutora Cristina Queirós
1. A dogmática relativa aos conceitos de “restrição”, “configuração” e “de-limitação” de direitos fundamentais não é una nem unívoca. Esta é uma das ma-térias onde uma determinada sociedade pode cultivar a mais lúcida consciência de si própria.
Na verdade, os conceitos “restrição”, “configuração” e “delimitação” de di-reitos produzem consequências fácticas e jurídicas. E compreendem, no âmbito da respectiva interpretação e aplicação, uma pluralidade, rectius, uma diversi-dade de posições jurídicas.
Se assim é, torna-se legítimo perguntar: o que determina, em concreto, a Constituição em matéria de restrição, configuração e delimitação de direitos e liberdades fundamentais?
Primeiro, que os direitos não são absolutos. Mas apresentam-se, todavia, como uma forma de divisão (: vertical) e limitação (: horizontal) do poder. Os direitos e liberdades fundamentais constituem a base da “soberania” ― the peo-ple, themselves.
Segundo, que as restrições (não confundir com os conceitos de “confi-guração” e “delimitação” dos direitos no caso concreto) têm de ser expressa-mente autorizadas, de forma directa ou indirecta, pela Constituição. Em qual-quer caso, têm de ter a sua “base” e “fundamento” na Constituição.
Terceiro, que não existe, entre nós, nenhuma “cláusula geral” ou “cláusula tácita” de restrição de direitos, que transforme a excepção em regra. A restrição é sempre particularizada e especificada em normas e princípios constitucionais. E encontra-se sujeita a uma interpretação restritiva[1].
Quarto, que a presunção, em caso de dúvida de constitucionalidade, é sempre a favor dos direitos e liberdades implicados e não a favor das autorida-des ou do poder público.
2. A questão torna-se particularmente relevante quando as restrições aos direitos fundamentais atingem no seu “âmbito” e “conteúdo” relações de esta-tuto especial, como é caso dos militares e das forças de segurança.
Mas, também, nestas hipóteses, em caso de dúvida, vigora uma presunção de constitucionalidade a favor dos direitos e liberdades fundamentais.
Para além da circunstância de as restrições, constitucionalmente autoriza-das, se encontrarem sujeitas ao princípio da proporcionalidade, devendo, em consequência, mostrar-se conforme aos seus três sub-princípios: “idoneidade” de meios, “estrita necessidade” e “proporcionalidade em sentido estrito”. Isto é, uma particular relação de adequação e de justiça.
3. A restrição a existir é sempre uma redução do âmbito de protecção do direito fundamental reconhecido. Não é, sob este ponto de vista, uma questão de delimitação de direitos em caso de conflito prático. Nesta última acepção, o âm-bito de protecção do direito é delimitado, no caso prático a decidir, face ao âmbito da garantia do seu livre exercício.
E esse âmbito de “garantia efectiva” depende, por sua vez, do “texto da norma” reconhecedora do direito ou liberdade jusfundamentais implicados, do estado da jurisprudência, e, por último, do seu “âmbito” ou “sector normativo”, isto é, da “situação normativa” a que haverá de aplicar-se.
4. E também, no quadro da mesma lógica de raciocínio argumentativo, não se deverá confundir o conceito de “cláusula restritiva”, a perspectiva da norma, na hipótese agora convocada, face ao disposto no artigo 270º da Constituição, com o conceito de “restrição” propriamente dito, já que este último compreende a perspectiva do Direito, rectius a perspectiva do Direito Constitucional.
Ora, é nesta última acepção, que a Constituição impõe que se proceda à distinção entre os conceitos de “restrição” e “configuração” de direitos. E essa configuração, segundo o parecer acertado de Konrad HESSE[2], converte-se numa “tarefa de legislação”. Isto é, a norma constitucional autoriza a lei a preencher um determinado “âmbito” ou “sector normativo”. Dito de outro modo, a norma constitucional confia ao legislador, unicamente, a determinação de um “conteú-do jurídico-normativo” carecido de conformação e/ou configuração jurídico-normativa, criando o legislador, ele próprio, a restrição admitida pela Consti-tuição.
5. Só que, no caso da configuração de direitos, ao contrário da restrição de direitos, o “âmbito de protecção” do direito permanece intacto, isto é, não resul-ta afectado, limitado ou restringido.
De modo diferente, a “regulamentação” de direitos, que se encontram sob “reserva de Constituição” (e não da lei), destina-se a definir “o pormenor”[3], sem que lhe seja permitido alterar ou reduzir o “âmbito” ou “conteúdo” de protecção ou garantia do direito ou liberdade implicados. Se ocorrer uma ingerência in-justificada, designadamente, por não ter passado o teste de proporcionalidade, essa intervenção será considerada ilícita, isto é, violadora do direito ou liberdade em causa[4].
II. A teoria do “conteúdo essencial”
1. A questão da ordenação dos direitos no caso concreto redunda numa “questão de interpretação”. O que se pergunta, em cada caso, é se o “âmbito” ou “sector normativo” do direito inclui ou não uma certa situação ou um modo concreto de exercício da respectiva posição jurídica.
Uma circunstância que implica, entre outras coisas, a definição e cons-trução prévias de uma teoria do “conteúdo essencial” — ou do “alcance central de aplicação dos direitos”[5].
Dentro desse “alcance central de aplicação” os direitos podem ser tornados compatíveis uns com os outros. Quer dizer, sob condições favoráveis e razoá-veis, existe um esquema praticável de direitos que pode ser instituído no qual o “conteúdo essencial” acaba por vir garantido e salvaguardado[6].
Por isso, em cada caso, deverá apurar-se se a “remissão para a lei”, como ocorre no disposto no artigo 270º da Constituição, resulta unicamente numa “re-missão conformadora”, ou se se trata, ainda, de uma “autorização de confor-mação-restrição”[7].
2. No caso do disposto no artigo 270º da Constituição, a margem estrutural de acção do legislador resulta limitada por uma “reserva de lei qualificada” (qualifizierte Gesetzesvorbehalt)[8]. O que significa que a intervenção do legisla-dor resulta, no caso, balizada por essa reserva, designadamente porque é a pró-pria Constituição que determina a “medida” da realização dos fins em nome dos quais a restrição foi autorizada.
E a “medida” só resulta constitucional se esses fins não puderem ser al-cançados por outros “meios alternativos” que resultem, no caso, menos gravosos face ao direito ou liberdade jusfundamentais.
Isto é, a liberdade de acção e configuração do legislador não pode ir mais além do que se encontra fixado na Constituição, já que os limites e a dimensão da protecção do direito ou liberdade implicados se apresentam como mais es-tritos.
3. Deste modo, o legislador goza face ao direito fundamental de uma mar-gem para a determinação de fins quando o direito compreende uma “reserva de competência de intervenção”, que deixa abertas as razões para essa intervenção, mas não ordena que se produza a intervenção legislativa, antes permite que esta ocorra no caso em que concorram essas razões[9].
A Constituição deixa nas mãos do legislador a decisão de fazer seus os fins, propósitos ou princípios enunciados na cláusula que estabelece a “reserva de intervenção”, na hipótese de pretender intervir no direito fundamental. É o que ocorre, v. g., nos termos do disposto no artigo 270º da Constituição. Essa mar-gem para a determinação de fins compreende, no caso, uma reserva de com-petência de intervenção.
3. Assim, compete essencialmente ao legislador:
● primeiro, o “ónus de provar” que existe um “interesse público relevante” ou “extraordinário” (compelling state interest), que deverá tomar precedência sobre o direito individual;
● segundo, uma conexão “relevante” ou “estrita” entre esse interesse pú-blico relevante ou extraordinário alegado e a protecção do mesmo no caso con-creto;
● terceiro, que de nenhum outro modo poderia o legislador proteger esse interesse por outra via de menor impacto discriminatório[10].
O legislador vê-se obrigado a justificar (: fundamentar) essa limitação, demonstrando e provando, no caso concreto, não apenas uma “relação próxima” (close fit) entre a justificação oferecida e os meios de que se serviu para a pro-mover, mas ainda que de entre os meios possíveis escolheu não apenas os menos drásticos ou discriminatórios, mas ainda os mais constitucionais, os únicos que no confronto com a Constituição e os órgãos politicamente conformadores re-sultam constitucionais, porque “menos gravosos” (less restritive) para o direito fundamental[11].
III. “Reserva de lei” e “reserva de Constituição”
1. A “reserva de lei” significa, no âmbito dos direitos, liberdades e ga-rantias, “reserva de lei parlamentar”[12]. Esta determina que as decisões essen-ciais sobre os pressupostos, circunstâncias e consequências derivadas de uma interferência nos direitos e liberdades fundamentais devem ser levadas a cabo pelo legislador, não podendo, como tal, ser delegadas na Administração Pú-blica[13].
Deste modo, quanto mais intensa for a forma como resultam atingidos os direitos e liberdades implicados tanto mais precisa e diferenciada deverá resultar a sua configuração legal.
É este, designadamente, o conteúdo da chamada “teoria da essencialidade”, utilizada como instrumento de controle pelos tribunais de Justiça Constitucional. Esta afirma que o legislador se encontra obrigado a tomar todas as decisões em áreas normativas fundamentais, sobretudo quando colidam com o exercício dos direitos e liberdades fundamentais, na medida em que esse exercício for sus-ceptível de configuração legal[14].
2. Por esta via, resulta clara a relação entre o princípio da “reserva de Constituição” e o postulado da “liberdade de conformação do legislador”. Mas não são conceitos idênticos. O primeiro pressupõe o princípio da “tipicidade constitucional de competências”[15], e, ainda, o “princípio da constitucionalidade” das restrições aos direitos, liberdades e garantias[16].
Por isso haverá que ter cuidado com a noção dos chamados “limites ima-nentes” não escritos.
Assim:
● A lei deve limitar-se a “revelar” ou a concretizar limites de algum modo presentes na Constituição. Não deve admitir-se a criação autónoma de limites supostamente imanentes.
● A definição desses limites deverá mostrar-se como único meio de re-solução de conflitos de outro modo insuperáveis entre direitos constitucionais de idêntica natureza.
● Essa delimitação de direitos, em caso de conflito prático, deve ser re-duzida ao estritamente necessário à superação do conflito[17].
IV. “Cláusulas gerais” e “cláusulas específicas” de restrição a direitos fundamentais
1. A esta luz, não poderá falar-se, entre nós, na existência de “cláusulas gerais”, unicamente em “cláusulas específicas” de restrições de direitos.
As restrições aos direitos fundamentais devem ser constitucionalmente au-torizadas, isto é, particularizadas, especificadas, traduzindo-se essa particula-rização na respectiva pré-determinação jurídico-constitucional.
De igual modo, e por idêntica ordem de razões, não poderá falar-se, entre nós, em “cláusulas tácitas” de restrição ou mesmo de “restrições de direitos não expressamente autorizadas pela Constituição”[18].
2. Igualmente será de excluir o recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem[19], à Convenção Europeia para a Salvaguardada dos Direitos do Ho-mem e das Liberdades Fundamentais[20], ou à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[21], sempre que esse reenvio ostentar o sentido de aí encontrar uma “autorização geral” ou “tácita” de restrição de direitos, que a Constituição não autoriza e, no limite, proíbe.
Os direitos ― e o Direito como expressão de uma forma de cultura e civilização ― não podem ser instrumentalizados como meios para a obtenção de determinadas finalidades políticas.
Uma possibilidade que não é admitida pela Constituição e que resulta ainda patentemente ofuscada pela ausência de regras ou critérios específicos que per-mitam determinar quando se deve respeitar o “direito” ou quando há lugar à sua “derrogação”[22].
O recurso à “ponderação de bens” como método de interpretação, logo a valores não dedutivos, não chega para justificar quer a referência ao “direito” quer à sua “excepção”[23].
3. Esses limites não se contêm expressamente no enunciado linguístico que recolhe o direito, antes derivam da necessidade de “delimitação de direitos” face a outros princípios ou bens constitucionais, como, v. g., a segurança colectiva ou a protecção de outros direitos, igualmente merecedores de tutela constitucional.
Além de que, a aceitação da existência de “limites imanentes”, estritamente associada à “teoria dos princípios”, torna inviável a referência à autorização constitucional.
Julgamos, por último, que a dissociação conceptuológica entre “restrições constitucionalmente autorizadas” e a “delimitação de direitos” no caso concreto resolveria o problema.
4. Naturalmente, que o estabelecimento de uma garantia constitucional dos direitos tem o sentido de reforçar essa protecção e não obviamente o sentido de a restringir.
Mesmo no quadro da União Europeia, o teor do disposto no artigo 52º da Carta dos Direitos Fundamentais (CDFUE) estabelece o critério da “norma mais favorável” ou da “protecção mais extensa”, querendo com isso significar que não autoriza a configuração de novas limitações ou limitações mais intensas ao exercício de direitos se estes puderem ainda ancorar-se numa norma de pro-tecção mais favorável ou extensa.
Mas uma opção, em todo o caso, que não deixa de ser criticável, já que se pode traduzir numa “fuga” ao próprio texto, deixando a determinação do âmbito e conteúdo dos direitos implicados a uma escolha política e discricionária dos diferentes legisladores nacionais[24].
De resto, uma pluralidade de sistemas de protecção de direitos funda-mentais, basicamente a três níveis ― internacional, comunitário e constitu-cional ― não se traduz necessariamente num maior grau de segurança e pro-tecção jurídicas.
Pelo contrário, um sistema “multinível” de protecção dos direitos e liber-dades fundamentais pode ter o efeito, “paradoxal” e “perverso” (por pressupor a construção de um princípio hierárquico), de potenciar conflitos entre jurisdições que se assumem como “guardiãs” dos direitos fundamentais[25].
V. A possibilidade de uma “deriva” constitucional dos direitos
1. A possibilidade de uma “deriva” constitucional dos direitos traduz-se, de um ponto de vista prático e operativo, no estabelecimento de “novas” limitações ou restrições, que não resultam como tal autorizadas pela norma constitucional.
O caso da “legislação anti-terrorista” nos Estados Unidos, e também na Europa, no post 11 de Setembro de 2001, incluindo o estabelecimento dos cam-pos de detenção em Guantánamo, à margem e em violação do Direito Interna-cional, ilustram bem este tema[26].
2. As “leis” de combate ao terrorismo constroem um “nomos” e “narrativa” próprios. Os recentes ataques terroristas ocorridos em Paris, na noite do passado dia 13 de Novembro, seguidos da decretação pelo Presidente da República do “estado de emergência”, reabriu o debate sobre a retórica da “guerra” contra o terrorismo.
E a questão é complexa tanto do ponto de vista político como normativo. E interpela, para além da questão da liberdade e da segurança dos cidadãos, o fundamento do exercício da própria autoridade pública, intra e extra muros, in-cluindo o Conselho de Segurança das Nações Unidas, e, em particular, no caso, o papel e a função do académico no que se reporta a problemas relevantes de Direito Penal, de Direito Administrativo, de Direito Financeiro, de Direito das Telecomunicações, e, inclusive, do próprio Direito Militar.
E traduz-se num conjunto de “leis” contra práticas consideradas terro-ristas, cujo objecto é essencialmente interdisciplinar e comparado. E que abarca não apenas o Direito interno, mas também o Direito supranacional, rectius, o Direito Internacional.
E desencadeia, por último, no plano interno e internacional, restrições constitucionais ao gozo dos direitos e liberdades (do qual, diga-se em abono da verdade, faz parte o próprio conceito de “segurança”), tanto individuais como colectivas.
3. Desde o 11 de Setembro de 2001, com efeito, que a relação entre os cidadãos e o Estado se tem vindo a afastar das salvaguardas tradicionais.
É não apenas a utilização dos serviços de informação, pela sua própria na-tureza caracterizados pelo secretismo, mas também o aumento exponencial das forças especiais de segurança, em particular, de combate ao terrorismo, a u-tilização de forças militares, inclusive no próprio âmbito do território nacional, sem esquecer o papel do debate democrático e de aplicação das normas cons-titucionais.
Em tudo isto, sem que se verifique uma definição geral de “terrorismo” sobre a qual não há consenso a nível internacional.
Depois, uma definição do próprio “crime” de terrorismo. Basta unicamente um conjunto de informações, apoio material, participação em actos terroristas? Excluindo os membros de organizações consideradas terroristas, sem partici-pação em tais actos? Recorrendo a uma definição ampla preventiva, ao estilo do chamado “direito penal do inimigo” (Feindstrafrecht), com distorção da pro-porcionalidade da medida da pena a aplicar?
E, neste caso, a “tipificação” do crime de terrorismo deve vir prevista em lei ordinária ou no Código Penal? Se for esta última a opção a tomar, então, o a-cusado gozaria de todas as garantias comuns, materiais e procedimentais, pre-vistas neste tipo de códigos.
Os exemplos são variados e podem multiplicar-se. Desde os presos de Guantánamo, detidos indeterminadamente por simples ordem executiva, sem julgamento em tribunal de Justiça (Estados Unidos), medidas de privação da liberdade com base em informações e colocação em listas anti-terroristas[27], extradição e restrições ao direito de imigração (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, e, no futuro, a própria União Europeia), restrições à liberdade de ex-pressão e de informação, direitos de auto-determinação informacional (digital rights), e tantos outros.
Enfim, um mundo “hobbesiano” de segurança e de perigosidade, de retrocesso e obediência, vindo directamente do “coração das trevas”.
VI. Renúncia a direitos fundamentais e relações de estatuto especial
1. Mas existe ainda uma terceira questão que importará referenciar: a “renúncia” a direitos fundamentais no quadro das “relações de estatuto especial” (Sonderstatusverhältnissen).
E isto porque, em caso de colisão entre dois ou mais bens jurídicos, tu-telados por normas constitucionais de idêntico estalão, o que se pede, é, jus-tamente, que o legislador, primeiro, ou o poder judicial, depois, ordenem cri-térios objectivos de “prioridade” e “harmonização” e não necessariamente “res-trições” a direitos e liberdades fundamentais.
Mais: qual a importância de que se reveste a respectiva “concordância” ou “consentimento” face à admissibilidade de uma actuação/intervenção por parte dos poderes públicos no “âmbito de protecção” dos direitos e liberdades im-plicados?
Deste modo, não reentra no conceito de “renúncia” a direitos fundamentais as situações em que o particular detém um direito mas não faz legitimamente uso dele. Por exemplo, ninguém pode renunciar ao direito de voto nem tão pouco ao seu livre exercício mesmo que não faça sistematicamente uso desse direito. Nestas circunstâncias, a solução deste aparente paradoxo está no recurso à “função” que os direitos são chamados a desempenhar numa ordem cons-titucional livre e democrática[28].
De resto, como se sabe, os direitos não valem unicamente na sua função “defensiva” ou “negativa”, como direitos subjectivos. Os direitos constituem, ainda, “valores”, isto é, “princípios objectivos” da ordem jurídico-constitucio-nal[29].
O equívoco, mais uma vez, resulta da circunstância de se confundir a questão da “legitimidade” do titular do direito com a questão da “vinculação” dos poderes públicos (ou, se for esse o caso, com a questão da vinculação das autoridades privadas)[30].
2. No campo das “relações de estatuto especial” a Constituição tem tam-bém uma palavra a dizer.
Aqui, de igual modo, não existe “renúncia” a direitos fundamentais, u-nicamente a sujeição a um “estatuto jurídico particular” constitucionalmente fixado e delimitado[31].
Esses estatutos não constituem um “aliud” face ao Direito Constitucional. Pelo contrário, devem encontrar-se expressamente determinados na Constituição ou, pelo menos, devem ser pressupostos por esta[32].
Não há aqui, de igual modo, “renúncia” a direitos fundamentais, nem tão pouco “limitações específicas” ou “implícitas” de direitos fundamentais, incom-patíveis com os pressupostos de um Estado de Direito democrático e consti-tucional[33].
E se se trata de “situações jurídicas de estatuto especial”, como as designa Konrad HESSE[34], é, justamente, porque estas se distinguem das “situações cívicas gerais” (allgemeine staatsbürgerliche Status). E são “especiais” no sen-tido em que prescrevem de modo simétrico e nivelador uma relação mais estreita do particular face aos poderes públicos, e, designadamente, o Estado, criando “deveres especiais”, que ultrapassam os direitos e deveres gerais de outros ci-dadãos. Por isso são estabelecidas tanto no “interesse do serviço” como no “in-teresse do particular”.
3. Essas “relações de estatuto especial” ― e não “relações gerais de poder” (besondere Gewalterhältnisse), como anteriormente vinham designadas ― ve-rificam-se no caso do funcionalismo público, dos militares, agentes milita-rizados, forças de segurança, reclusos, alunos de escolas públicas e privadas ou mesmo a nível das relações laborais ou familiares.
E não se trata, como alguns pretendem fazer crer, de uma “renúncia”, “auto-restrição” ou “auto-limitação” de direitos e liberdades fundamentais[35], com a qual não se pode concordar.
Esse estatuto, pelo contrário, é restrito ao âmbito da função e tarefas que lhe foram confiados ou à situação em que se encontram os particulares que caiam na alçada deste tipo específico de relações de “estatuto especial”.
Primeiro, porque os direitos e os deveres não se encontram no mesmo pla-no. A linguagem do “dever” não é um discurso habitual em sede de direitos fundamentais. Antes, os deveres devem ser vistos, em primeira linha, como “limites” ao exercício dos direitos fundamentais[36].
Depois, porque essas “relações de estatuto especial” devem ser funda-mentadas ou por adesão voluntária dos próprios (: relação do funcionário ou agente público, incluindo militares, agentes militarizados e forças de segurança) ou por requerimento com base na lei (: relação do aluno na escola com base numa obrigação escolar).
E devem ser fundamentadas na estrita medida em que se distinguem das “relações jurídicas gerais”. Assentam, basicamente, numa “relação situacional”, isto é, num “estatuto especial”. Não são situações submetidas a um poder, antes “condições de vida especiais”, com uma legalidade própria material e espe-cial[37].
4. A esse título, as “relações de estatuto especial” não se encontram “de fora” do Direito Constitucional. São, pelo contrário, pressupostas pela Consti-tuição. E são fundamento de “direitos” e “deveres especiais”, posto que inserem o particular num âmbito de vida especial. Produzem efeito fundamentador de “status” face ao “status cívico geral”. Por isso são qualificadas de “estatuto es-pecial”. E não existe uniformidade quanto a esses estatutos. Em comum entre eles existe apenas a circunstância de se oporem ao “estatuto cívico geral”[38].
Deste modo, no caso dos militares, agentes militarizados e forças de se-gurança, dispõe o artigo 270º, sob a epígrafe de “restrições ao exercício de di-reitos” que: “[a] lei pode estabelecer, na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções, restrições ao exercício dos direitos de expressão, reu-nião e manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em ser-viço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança, e, no caso destes (últimos), a não admissão do direito à greve, mesmo quando re-conhecido o direito de associação sindical”.
Não assim na hipótese dos magistrados e dos diplomatas. Aí a Constituição não prevê nenhuma autorização para a restrição de direitos ou liberdades fun-damentais. Somente em caso de conflito prático é que se poderá recorrer a uma “delimitação” de direitos ou à imposição de “deveres específicos”, para além daqueles que resultam objectivamente do exercício constitucional e legal das respectivas funções, de acordo com o “princípio da proporcionalidade”.
O mesmo sucede no que diz respeito à função pública[39]. Esses estatutos, tal como os restantes direitos e deveres fundamentais, são parte integrante da ordem jurídico-constitucional e não contrário. Por essa razão, em caso de conflito, ha-verá que proceder a uma tarefa de “concordância prática”[40].
5. Os direitos não devem ser sacrificados às relações de estatuto especial, nem as garantias constitucionais desses direitos devem tornar impossível a fun-ção dessas relações. Em caso de conflito, haverá que aportar numa “efectividade óptima” entre ambos os pólos dessa relação, isto é, entre o exercício dos di-reitos fundamentais e a funcionalidade das relações de estatuto especial.
Em caso de dúvida, a relação de estatuto especial deve ser interpretada à luz dos direitos fundamentais (: “interpretação conforme aos direitos funda-mentais”) mesmo que isso acarrete dificuldades e inconvenientes ao funciona-mento da própria Administração Pública[41].
De contrário, só serão admissíveis limitações aos direitos fundamentais que decorram do imperativo de solucionar “conflitos práticos” mediante o recurso a um procedimento de ponderação[42].
Essas relações devem ser particularmente justificadas pela natureza da relação jurídica na qual se inserem. A redução do direito, a ocorrer, segue aqui as regras gerais previstas para o “status cívico geral”, isto é, genericamente, o disposto no artigo 18º/2 e 3 da Constituição.
E depende do “locus” onde se colocar o acento tónico: no Estado ou nos Direitos Fundamentais.
[1] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais. Teoria Geral, 2ª ed., Coimbra, 2010, p. 271.
[2] KONRAD HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deuts-chland, 14ª ed., Heidelberga, 1984, pp. 122 ss., 123.
[3] PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte ― Staatsrecht II, 19ª ed., Heidelberga, 2003, pp. 53-55.
[4] Cfr., artigo 18º/2 e 3 da CRP.
[5] Na terminologia de JOHN RAWLS, Political Liberalism, Nova Iorque: Columbia U-niversity Press, 1993, pp. 294 ss.
[6] Ibid., p. 297.
[7] J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, 2003, reed., pp. 1276 ss.
[8] Na terminologia de PIERROTH/SCHLINCK, Grundrechte, cit., pp. 60 ss. Cfr., por último, o disposto no artigo 164º/o da CRP (: reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República).
[9] ROBERT ALEXY, Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales (I), in: “Re-vista Española de Derecho Constitucional”, 22 (2002), pp. 23 ss.
[10] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., p. 257.
[11] Ibid. Cfr., por último, LAURENCE H. TRIBE, American Constitutional Law, 3ª ed., Mineola, Nova Iorque: The Foundation Press, 2000, cap. 16. Para a Alemanha, v., sobretudo, ROBERT ALEXY, Sobre los derechos constitucionales a protección, in: R. GARCIA MANRIQUE (ed.), “Derechos Sociales y Ponderación”, Madrid, 2007, pp. 57 ss., e Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales (I), cit., pp. 24 ss. Por último, MARTIN BO-ROWSKI, Grundrechte als Prinzipien, Baden-Baden, 1998, pp. 153 ss.
[12] Cfr., artigo 165º/1/b da CRP.
[13] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., p. 260.
[14] Ibid., p. 261.
[15] Cfr., artigo 111º/2 da CRP.
[16] Cfr., artigo 18º/2 e 3 da CRP.
[17] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Por-tuguesa. Anotada, I, 4ª ed., Coimbra, 2007, p. 388.
[18] Como o faz, entre nós, JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos funda-mentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, especialmente, pp. 289 ss. Por último J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, cit., p. 1277, e J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa. Ano-tada, I, cit., p. 391, que referem, igualmente, em sede da teoria dos “limites imanentes”, a possibilidade da existência de “restrições aos direitos fundamentais não expressamente au-torizadas pela Constituição”, derivadas, essencialmente, da necessidade de compatibilizar di-reitos em caso de conflito prático.
[19] Cfr., artigo 29º/2º.
[20] Cfr., artigos 15º e 17º.
[21] Cfr., artigo 52º.
[22] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., pp. 265 ss., e Entre a ordem e a desordem: a política dos direitos fundamentais, in: “Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto”, Ano IV, Coimbra, 2007, pp. 51 ss.
[23] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., p. 266.
[24] Ibid., pp. 266 ss.
[25] KLAUS STERN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, III, 1 (“Allge-meine Lehren der Grundrechte”), Munique, 1988, p. 299. Por último, CRISTINA QUEIROZ, O modelo global dos Direitos Constitucionais, in: JURISMAT, 7 (2015), pp. 231 ss.
[26] Para maior desenvolvimento, RONALD DWORKIN, Is Democracy Possible Here? Principles for a New Political Debate, Princeton: Princeton University Press, 2006, especial-mente, capítulo 2, intitulado: “Terrorism and Human Rights”, BRUCE ACKERMAN, Before the Next Attack. Preserving Civil Liberties in an Age of Terrorism, New Haven: Yale Uni-versity Press, 2006, MICHAEL IGNATIEFF, The Lesser Evil. Political Ethics in an Age of Terror, Princeton: Princeton University Press, 2004, e GIOVANNA BORRADORI, Phi-losophy in a Time of Terror. Dialogues with Jürgen Habermas and Jacques Derrida, Chi-cago: Chicago University Press, 2003. Por último, com referência aos poderes presidenciais, SCOTT M. MATHESON, Jr, Presidential Constitutionalism in Perilous Times, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2009, com indicações bibliográficas e jurisprudenciais.
[27] A título meramente exemplificativo, as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao abrigo do capítulo VII da Carta, como recentemente ocorreu com as listas personalizadas inseridas na política de combate ao terrorismo, disponível no “sítio” da In-ternet: www.un.org/sc/commities/consolidated.pdf. Ou a intervenção de forças militares ou militarizadas no quadro dos sistemas de segurança colectiva ou em missões humanitárias. Por último, Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), sentenças Kadi I (2008) e Kadi II (2010) ― C-402/05 P-Kadi e Al Barakaat Internacional Foundation/Conselho e Comissão, e C-584/10 e C-593/10, disponíveis no sítio da Internet: curia.europa.eu, 2008 e 2010, respec-tivamente.
[28] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., pp. 366 ss., 367.
[29] Ibid., pp. 114 ss.
[30] PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte, cit., p. 39. Por último, CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, cit., p. 368.
[31] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., p. 368.
[32] Ibid.
[33] Ibid., pp. 369 ss.
[34] KONRAD HESSE, Grundzüge, cit., pp. 129 ss. Por último, WOLGANG LOS-CHELDER, Grundrechte im Sonderstatus, in: ISENSEE/KIRCHHOF (eds.), “Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland”, V, 2ª ed., Heidelberga, 2000, pp. 805 ss.
[35] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 6ª ed., Coimbra, 2015, cit., p. 504, e J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 6ª ed., Coimbra, 2012, pp. 293 ss., que falam, respectivamente, em “auto-restrição” e “auto-limitação” de direitos fundamentais.
[36] PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte, cit., p. 49.
[37] KONRAD HESSE, Grundzüge, cit., pp. 129-130.
[38] Ibid.
[39] Cfr., artigo 269º da CRP.
[40] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., pp. 370 ss.
[41] KONRAD HESSE, Grundzüge, cit., p. 131.
[42] CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, 2ª ed., cit., pp. 371-372.
Conclusões
Juiz Conselheiro do STJ (jub) António Bernardo Colaço

CONCLUSÕES da 4ª CONFERÊNCIA realizada pela ASPPM
“A Polícia Marítima” – Questões de (in) constitucionalidade
1 - Como nota preambular, tendo em conta a temática em discussão e os intervenientes-participantes a ASPPM não deixa de estranhar a quase total ausência dos meios de comunicação social apesar de ter sido informada e expressamente convidada para esta conferência. Esta, tão pródiga em criticar quase sempre pela negativa qualquer envolvimento da Polícia Marítima (PM), entendeu por bem eclipsar-se deste evento que visou precisamente a discussão em toda a sua extensão da magna questão sobre o papel da polícia marítima portuguesa e particularmente da legislação que a rege. Privou-se assim o grande público do direito à informação. Esta omissão, que abrange órgãos de imprensa escrita e audiovisual, tem sido algo sistemática o que faz supor a existência, em plena democracia, de pressões para ocultação de acontecimentos que porventura contrariam certos interesses instituídos.
2 - A 4ª Conferência da ASPPM, representou o ponto alto do processo encetado pelos profissionais da PM no sentido da sua autonomização face à Marinha Militar. Enquanto elementos de uma força de segurança reclamam a sua dignificação em sintonia com os demais profissionais da mesma classe.
Esta Conferência vem no encadeamento lógico das 3 anteriores (Novembro ’13: Setembro’14 e Junho’15). Sem pôr em causa a lúcida e preclara intervenção de cada um dos distintos oradores, importa sublinhar que cada uma dessas realizações foi objeto de considerações finais. A sua ponderação torna-se pois essencial para o conhecimento e análise global de toda esta problemática, a que se acopla agora o rescaldo da elevada postura das intervenções desta efeméride.
4 – Num espaço de pouco mais de dois anos e meio debateu-se, assente numa base técnica e profissional dos intervenientes, a ampla dimensão dos problemas que afetam e afligem o meio policial marítimo, unicamente geradas pelas imposições e restrições de natureza militar em nada compatíveis com a veste civil que deve caracterizar uma força policial como a PM num Estado de Direito Democrático (EDD).
Face à crescente dificuldade e contestação dos profissionais da PM no seu relacionamento com a supremacia militarista e perante a inércia do poder político em tentar solucionar com clareza e definitividade este problema, a ASPPM enquanto representativa dos profissionais da PM, optou pela via responsável de avaliar até que ponto a atual configuração legal prevista para a PM se compagina com a Constituição, baseada em seguintes dois parâmetros: - a profusa e confusa legislação extravagante por vezes até contraditória nas suas estatuições e, - as ocorrências e situações anacrónicas que vinham tendo lugar sob a sua égide. Tratava-se, por isso, de fazer não uma leitura legal da Constituição mas sim de uma leitura Constitucional da lei.
5 - Políticos de diversos quadrantes, académicos, especialistas, militares, magistrados, juristas e sindicalistas avaliaram a problemática pelos mais variados prismas e muita luz se fez. Foi unanimemente reconhecido que a PM carece de um Estatuto inovador onde seja claramente reconhecida a sua natureza de força de segurança, inserida no SAM, mas independente da vertente militar e autónoma face à AMN, com competências e funções bem definidas à semelhança de outras forças policiais, de natureza civil.
6 - Ficou destacado a inconsistência do entendimento em como defender uma visão meramente utilitarista ou “piedosa” da relação AMN-PM, no sentido de que tudo corre bem, nada há que mudar cabendo apenas prosseguir no caminho, secundariza a valoração dos princípios em que assenta a essência do Serviço Policial, distorce a natureza militar da AMN enquanto estrutura de coordenação de órgãos da Marinha e alimenta uma incursão perigosa ao visar o controlo e a direção de uma força de segurança que institucionalmente lhe está vedada. A legislação até agora produzida, apesar de dimanada de órgãos de soberania, é muito insuficiente, deficitária e pouco expressiva para legitimar o controlo militar da PM, pois reflete concessões e conformismos que a Constituição não permite.
7 - Foi realçada uma falta de empenhamento, senão mesmo de coragem por parte do poder político em discutir o conceito de segurança interna, o que tem viabilizado a protelamento de uma solução de base constitucional para ultrapassar o artifício da relação AMN-PM. Com efeito, e ao contrário do entendimento de alguns intervenientes no debate, a questão não se colocava na descoberta de casos em que se justificaria uma intervenção militar em matéria de segurança interna sem declaração de estado mas a de encontrar a adequada solução para libertar a PM do constrangimento militarista conformando-a com o ditame da Constituição.
8 - O envolvimento militar na questão policial é tão simples quão complexa; simples por estarmos face a duas estruturas algo parentes e legitimadas ao uso de força na defesa de valores de um EDD; complexa pelo distinto enquadramento e a forma que esta defesa deve e tem de revestir em tempo de paz e normalidade democrática no quadro da Constituição. As Forças Armadas ( FF.AA) são o garante da soberania nacional e o seu prestígio não se discute nem pode jamais ser posto em causa. Impõe-se no entanto que esteja bem clarificado até que ponto podem ir em tarefas na defesa da segurança interna, atendendo a que esta está prioritariamente a cargo das Forças de Segurança (FF. Seg.).
9 - Após a 1ª Revisão Constitucional (1982), defender que as FF.AA. podem por direito próprio, sem mais, intervir na segurança interna seria, na opinião de um dos oradores, repristinar o sentido do artigo 53º da Constituição de 1933 o qual impunha tal encargo a instituições militares, sob a designação de “manutenção de ordem pública e de paz pública”. Um tal entendimento faz tábua rasa da nova realidade – a democrática – que hoje se vive, para o que existe a figura de Secretário-Geral de Segurança Interna, que tem a seu cargo a coordenação de todas as forças intervenientes.
10 - As novas ameaças, a transnacionalidade de tráfico criminal ou o terrorismo com reflexo no interior do país, não pode justificar o controlo militar de estruturas policiais, e isto por duas ordens de razões: por um lado, a crescente qualificação das forças de segurança para este efeito, sem que tal se confunda com a militarização da polícia e por outro, por a ação das forças armadas, sendo musculada tem em mira sempre um inimigo, podendo acarretar o risco de consequências imprevisíveis no âmbito vivencial do país, nomeadamente o de uma policialição dos militares.
- Neste contexto o conceito de duplo uso, que tem apenas subjacente uma questão de uso de meios, apresenta-se como um subterfúgio de disputa entre a Marinha militar e a PM na medida em que impede esta de exercer as suas funções policiais em plena autonomia e extensão. A isto acresce o problema de confusão de competências de calibragem diferenciada, colocando em perigo a própria segurança interna. Em tempo de paz e normalidade democrática o alcance duplo uso não pode ir além do estrito padrão social de cooperação e colaboração das FF. AA. previstos no artigo 275º da Constituição.
11 - Há todo interesse na abordagem e consagração legislativa quer do Conceito de Segurança Interna quer de um Estatuto da Condição Policial com virtualidade para definir e distinguir o quadro de competências, as funcionalidades e as bases interventivas das Forças de Segurança e das Forças Armadas, pondo termo ao “nevoeiro” que caracteriza a ampla e confusa legislação atualmente vigente, eliminando a artificiosa relação AMN-PM, violando a natureza das estruturas que compõem o SAM, consagrando a despersonalização dos profissionais da PM pela sua sujeição a um ditame militarista em tempo de paz através de um forçado sistema de “inerências”, tudo à margem dos princípios que norteiam a Constituição.
12- Sufragando o entendimento de que os direitos não têm uma configuração absoluta, o seu exercício constitui o pressuposto do normal funcionamento das instituições e a base de democracia. Qualquer restrição que venha a ser aplicada, constitui sempre uma exceção, carecendo sempre de ser justificada por parte de quem a suscita. Nenhuma restrição poderá todavia ser de molde a descaracterizar o próprio direito a que diz respeito. Qualquer lei que tal preveja estará a atropelar o ditame do artigo 18º da CRP.
13 - Sendo a PM, uma força de segurança, não está demonstrado em termos constitucionais que a sua natureza ou o seu funcionamento requeiram um tratamento diferenciado ou esteja sujeita a restrições nem para aquém nem para além do que caracterizam os direitos, regalias e deveres dos profissionais de demais forças e serviços de segurança, nomeadamente e entre outros quanto, à natureza civil da sua condição, ao percurso dos graus da hierarquia até ao topo e ao direito ao associativismo sindical.
14 - Tanto a Lei Orgânica do Ministério de defesa Nacional como a Lei Orgânica da Marinha são omissas em referenciar a PM. Atendendo no entanto à flagrante configuração militarista da AMN, conforme decorre dos artigos 2º e 7º do DL 44/2002 de 02.03., à implícita inserção da PM na AMN nos termos do artigo 3º.3. e ao exercício de funções policias por um Vice- Almirante do ativo previsto no artigo 15º.4. (ambos do DL), aquelas Leis Orgânicas violam a versão e o espírito da 1ª Revisão Constitucional na destrinça entre a Segurança Interna – (Polícia) - (Título IX) e a Defesa Nacional- (Forças Armadas) – (Título X). E não só.
- O artigo 3º.3. e 15º.4. do DL 44/2002 estão inquinados respetivamente de uma dupla inconstitucionalidade material ora, porque desrespeita o alcance da 1ª Revisão Constitucional de 1982 acima referido ora, por invadir matéria de exclusiva e absoluta reserva da AR a que alude o artigo 164º, al u) da Constituição. A estas acresce uma inconstitucionalidade orgânica e formal já que a estatuição demandaria que o fosse por deliberação da AR, revestindo a forma de uma lei.
- Os artigos 2º e 4º do DL 235/2012 ao definir a PM (como) uma força policial ………………………..composta por militares da Armada e agentes militarizados, incorrem numa inconstitucionalidade material, epor via disso, ao imprimir esta mesma redação ao artigo 1º.2. do DL 248/95 e ao artigo 15º.1. do DL 44/2002 arrasta no mesmo tipo de inconstitucionalidade estas mesmas normas. Com efeito a Revisão Constitucional de 1982, operando a distinção entre a Segurança Interna e a Defesa Nacional, coloca a polícia sob o manto da Administração Pública. Se a isto acrescentarmos que o Governo invadiu o campo legislativo da exclusiva competência da AR, então os preceitos em apreço estão afetados por uma dupla inconstitucionalidade formal e orgânica e formal.
15 - Acabam de ser apresentados na Assembleia da República dois Projetos de Lei – a) nº 237/XIII/1ª quanto à Lei Orgânica da Policia Marítima e b) nº 238/XIII/1ª quanto à Lei Orgânica da Autoridade Marítima Nacional. Estes projetos, procuram solucionar a situação da Polícia Marítima à luz da Constituição da República, enquadrando-a como uma força de segurança e órgão de polícia criminal de natureza civil, à semelhança do que deve e tem de ser uma instituição policial num Estado de Direito Democrático. A ASPPM está confiante no sentido de responsabilidade democrática dos partidos políticos com assento parlamentar para que através dos seus grupos parlamentares, na base de diálogos construtivos e consensos produtivos alcancem a desejada solução no sentido da dignificação dos profissionais que representa e por uma eficácia e prestígio cada vez crescentes da Polícia Marítima Portuguesa.
Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
16.06.2016 António Bernardo Colaço – Juiz – Conselheiro do STJ-jubilado.
Encerramento
Intervenção do Secretário dos Magistrados do Ministério Público

Exmo senhor Presidente da Associação Sócio-Profissional da Polícia Marítima, Dr. Miguel Soares
Exmo Senhor Juiz Conselheiro Bernardo Colaço
Exmo Senhor Juiz Conselheiro Mário Mendes
Exmo Senhor Deputado Jorge Machado
Ilustres representantes das Associações Sócio-Profissionais aqui presentes,
Em primeiro lugar agradeço o honroso convite que me foi endereçado para estar neste evento, com tantas personalidades notáveis da área da justiça.
Em segundo, não posso deixar de assinalar o regresso à minha antiga faculdade.
Regressar como orador não deixa de ser estranho, quando aqui passei 5 anos da minha vida a ouvir lições dos mestres.
A presente conferência visa discutir o papel da Polícia Marítima no ordenamento jurídico.
Nos tempos eu correm, sob a ameaça do terrorismo e de derivas securitárias, cada vez é mais difícil distinguir o que compete à Defesa, à Segurança Interna e à Justiça.
No entanto, distinguir bem o âmbito de atuação de cada uma das áreas é fulcral para garantir os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.
A lógica da Justiça, da Segurança Interna e da Defesa são substancialmente diferentes.
As perspetivas da Segurança Interna e da Defesa são tendencialmente securitárias.
Nestas admite-se mais facilmente o sacrifício do indivíduo em prol dos interesses da comunidade.
Numa perspetiva da Justiça, a visão centra-se mais na defesa dos direitos individuais.
A Polícia Marítima é um órgão de polícia criminal, mas os seus agentes são militarizados.
Esta dúplice vertente faz com que existam algumas ambiguidades.
A questão central que se tem de colocar é ase a função material da Polícia Marítima é militar ou policial.
As funções de investigação criminal são materialmente funções policiais, estreitamente ligadas à área da Justiça.
É bom recordar que durante muito tempo a investigação criminal esteve ligada só à Polícia Judiciária.
Tal como os outros órgãos de polícia criminal realizam diligências no âmbito de inquéritos criminais, também assim a Polícia Marítima o faz.
Não podemos falar que se trata de uma estrutura sujeita estritamente a um comando militar, pois de acordo com o Código de Processo Penal e da Lei de Organização de Investigação Criminal a Polícia Marítima tem de atuar de acordo com as ordens do Ministério Público e na sua dependência funcional.
De acordo com o artigo 1º do Código de Processo Penal “os órgãos de polícia criminal são todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados pelo Código de Processo Penal”.
Segundo o artigo 270º, nº 1 do Código de Processo Penal, o Ministério Público pode delegar competências para a realização de diligências de inquérito nos órgãos de Polícia Criminal.
A Lei da Organização da Investigação Criminal também disciplina as relações dos OPC com a Autoridade Judiciária.
Se a Polícia Marítima tivesse funções puramente militares seria impensável que existissem duas estruturas paralelas com competências para emissão de ordens.
A estrutura militar é caraterizada pela sua hierarquia rígida, onde é impensável existirem várias estruturas com competência para emissão de ordens relativamente às mesmas pessoas.
Concluo assim que, apesar da estrutura militarizada e integração no Ministério da Defesa, a Polícia Marítima comunga das características típicas de uma polícia.
Parece tautologia, mas como há quem tenha algumas dúvidas, tal como o nome indica, a Polícia Marítima é uma polícia.
Após esta breve introdução, a questão que se impõe parece evidente, se é uma polícia e que investiga assuntos civis porque é que é diferente de outras?
Durante muitos anos, entre todas as polícias, somente a Polícia Judiciária tinha um sindicato (a ASFIC).
É de salientar que se tratava de uma polícia sob a tutela do Ministério da Justiça.
A todas as outras polícias se encontrava vedado o direito de constituírem sindicatos.
A luta durou muitos anos, com episódios caricatos como a célebre manifestação dos secos e molhados.
Fruto da persistência e da existência de argumentos válidos, bem como de apoios relevantes em que aqui destaco o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Bernardo Colaço, neste momento a PSP tem diversos sindicatos.
Ao contrário do que se chegou a afirmar anteriormente, a sociedade portuguesa não caiu no caos, na anarquia ou desordem generalizada pelo facto de existirem sindicatos na PSP.
Aliás, noutros países existem igualmente sindicatos de polícia e não se conhece que a ordem pública tenha ficado colocada em causa devido a este facto.
Se existem sindicatos na Polícia Judiciária e na PSP qual a razão, porque não existem na Polícia Marítima?
Alguns dirão, os militares e militarizados não podem ter sindicatos.
No entanto, é preciso voltar ao tipo de funções que desempenham.
Será que as funções que a Polícia Marítima efetua serão tão substancialmente diferentes daquelas que são desempenhadas pela PSP e pela ASFIC para se justificar um tratamento diferente?
Se assim não for, o que entendo, é que se verifica um tratamento diferenciado para realidades substancialmente similares.
O princípio da igualdade é um dos princípios basilares da Constituição da República Portuguesa (art.º 13º CRP).
De acordo com o mesmo, deve existir um tratamento igualitário entre situações similares.
Por outro lado, os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando existam circunstâncias ponderosas que o imponham.
O art.º 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa dispõe que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
O direito de constituir sindicatos e exercer uma atividade sindical livre foi uma das maiores conquistas da revolução de Abril e, por essa razão, tem consagração constitucional (art.º 55º da CRP).
Face a tudo o que foi dito, as conclusões parecem óbvias.
Não vislumbro qual a razão porque não exista um sindicato da Polícia Marítima.
Sei de experiência adquirida que os sindicatos e os seus representantes são muitas vezes incómodos e desafiam o poder estabelecido.
Em determinados momentos em que ocorreu uma maior intervenção dos sindicatos, algumas pessoas também colocaram em causa que pudessem existir sindicatos nas magistraturas, apesar das instâncias internacionais afirmarem precisamente o contrário.
Decorridas mais de quatro décadas sobre o 25 de Abril, é certo que para alguns continuam a vigorar princípios caducos, pouco compatíveis com a democracia.
Essas pessoas não gostam de sindicatos ou da liberdade de expressão, mas apenas pretendem impor a sua autoridade pela força.
A existência de um sindicalismo vivo e responsável é sinal de vitalidade de uma democracia.
A luta da associação sócio-profissional da Polícia Marítima tem dado bons frutos.
A realização desta conferência espelha o seu dinamismo e o caminho que pretende seguir.
Contem com a nossa colaboração e solidariedade.
Intervenção do Juiz-Conselheiro do STJ (jubilado) Mário Mendes

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