Artigo escrito pelo Vice-Almirante Álvaro José da Cunha Lopes, ex Comandante-geral da Polícia Marítima
Breve comentário ao artigo intitulado “A Polícia Marítima, enquadramento e origens. Uma polícia secular de especialidade no âmbito da Autoridade Marítima”, da autoria do Dr. Costa Diogo.
O artigo mencionado na epígrafe, publicado nos Anais do Clube Militar Naval, edição de Julho–Dezembro de 2015, págs. 675-682, merece uma leitura atenta por parte daqueles que têm particular interesse nas questões que afectam a Polícia Marítima.
Como todos os artigos similares do autor, e tratando-se de um conhecedor profundo da matéria, e também tendo em conta a sua posição funcional privilegiada como assessor jurídico do dirigente máximo da PM, assim como o consabido reconhecimento de se tratar dum excelente jurista e articulista, a qualidade do artigo e a sua substância, só por si, justificam esse olhar atento.
Pessoalmente, por imperativo de consciência, de quem exerceu durante cerca de sete anos dois cargos de topo da hierarquia da PM, a isso me sinto obrigado.
E como, de forma genérica, por detrás dos grandes e nobres objectivos existem, quase sempre, outras razões que, verdadeiramente, estão na origem do acontecimento, o escrutínio dessas razões é essencial para uma melhor compreensão do problema em equação.
A tentativa de procurar identificar e extrair do artigo eventuais opacidades que sejam determinantes no processo evolutivo da afirmação e consolidação da PM, enquanto força de segurança interna, nos termos da Constituição e da Lei de Segurança Interna, é o propósito deste breve comentário, que deve ser entendido como apenas um contributo para uma reflexão mais profunda sobre o tema.
O artigo em si, bem elaborado e bem estruturado, apresenta uma, muito útil, síntese lógica e sistémica das atribuições e competências da polícia marítima enquanto força policial de competência especializada nos assuntos do mar e enfatiza a evolução legislativa operada nos últimos vinte anos. E sempre se poderá dizer que, tratando-se de uma crónica, o seu objectivo é fazer um ponto de situação, é mostrar o estado da arte em que se encontra a PM, sem preocupações de um olhar crítico sobre a instituição ou de uma visão prospectiva quanto ao seu desenvolvimento.
A verdade é que o artigo pode induzir os menos cautos na ilusão de que o enquadramento da PM, a identidade e regime próprios se estão a desenvolver, desde a origem da actual PM, de forma harmoniosa e progressiva.
Mas o simples facto de se constatar que, em vinte anos, não foi possível aprovar uma lei orgânica, nos termos da Constituição (quando noutras forças policiais se aprovaram várias versões), nem foi possível uma alteração à exígua dimensão de 513 elementos, ou uma alteração a uns Estatutos que estão totalmente desajustados da realidade actual, é a prova evidente da desmistificação dessa ilusão.
É verdade que o artigo identifica, mas de forma muito ténue, essas lacunas, que são no essencial, os instrumentos estruturantes para uma consolidação sólida da justificação da necessidade e da existência da PM (os verdadeiros alicerces), mas não lhes dá relevo, nem carácter de imprescindibilidade, nem aponta um caminho para a sua prossecução.
Pior ainda, quando no último parágrafo se diz que é necessário fechar o ciclo legislativo, mas que será um processo ainda demorado, aqui numa visão prospectiva em relação ao futuro, parece estar-se a enviar uma mensagem para o interior e o exterior da instituição. Eis uma das potenciais razões que justificam a necessidade do artigo no tempo oportuno.
Legitimamente podemos questionar quantos anos vão ser necessários para terminar o ciclo - mais dez, vinte ou a intenção é mesmo que nunca venha a acontecer?
Durante a anterior legislatura foi criada a expectativa de que findo o processo legislativo estruturante das Forças Armadas, o Ministério da Defesa iria empenhar-se em resolver as questões estruturantes da Autoridade Marítima e da Polícia Marítima. Agora a conjuntura política alterou-se, há um novo Governo, uma nova maioria de quadrantes políticos distinta da anterior, um Ministro da Defesa que é professor universitário de direito internacional, um Presidente da República professor universitário de Direito Constitucional e um Ministério do Mar, com poderes de coordenação transversal dos assuntos do mar.
Ora, nesta conjuntura, com titulares de órgãos de soberania com uma craveira intelectual e profissional de tal envergadura, seria absurdo que se avançasse com soluções legislativas que não respeitem o preceituado na Constituição. Presume-se que isso seria o descrédito dos órgãos de soberania que os actuais titulares jamais quererão correr.
É que, nos termos constitucionais, a discussão e aprovação de uma lei orgânica de uma polícia deve ser feita na AR, sob pena de violação dos artigos 112º, 164º e 272º da Constituição. Esta matéria é da reserva absoluta de competência legislativa da AR.
Isto, naturalmente, obrigaria a uma discussão na AR, não só sobre a PM, mas também, por arrastamento, sobre a AMN e o próprio SAM. Ora, os interesses corporativos e mesmo sem afastar os pessoais, por certo, não estão dispostos a correr esses riscos, e por isso tudo farão para que esta discussão seja adiada “sine die”. E o poder político já demonstrou, por diversas vezes, que tem cedido tolerantemente a estes interesses.
No mínimo, esta potencial mensagem, pode significar que do lado institucional, nos próximos tempos, não vai haver qualquer iniciativa no sentido de promover esse fim de ciclo legislativo.
Aos incautos importa prevenir as possíveis e eventuais falsas campanhas de boas intenções, de promessas inviáveis e da criação de bodes expiatórios, por actores com objectivos que possam visar, entre outros, o protagonismo e servirem-se das instituições para os seus projectos de poder pessoal.
A verdade é que duas décadas é muito tempo para deixar que uma força de segurança viva na incerteza da sua continuidade existencial. A inexistência desses instrumentos legais estruturantes, por mais que queiramos, por mais voluntarismo e determinação que o comandante-geral possa demonstrar, como no caso da criação do GAT e do GMF, por despacho do CGPM, com notória falta de segurança jurídica, ou o excelente trabalho que os profissionais da PM têm desenvolvido no âmbito da agência FRONTEX, não permite uma afirmação sólida e consolidada da PM enquanto força de segurança interna e órgão de polícia criminal.
É preciso reflectir sobre o que falhou nestes vinte anos para não se terem dado esses passos decisivos.
A última alteração à LSI que permitiu colocar o CGPM no conselho superior da segurança interna foi um passo importante, mas incompleto, porque, apesar dos esforços, provavelmente, não interessava a forças internas e externas que se alterasse o artigo 25º da LSI, no sentido de incluir a PM como uma força de segurança interna.
Sobre esta matéria o articulista releva o facto da LSI estatuir que os órgãos da AMN exercem funções de segurança. Isto, só por si, não comete atribuições nem afirma a PM como força de segurança, nem respeita a especificidade que a Constituição confere à função policial.
De facto, os órgãos da Autoridade Marítima exercem funções de segurança safa (safety),como por exemplo, no âmbito da poluição, da segurança da navegação, da segurança balnear, nas vistorias a embarcações etc, com o apoio ou não da PM. Mas esta força de segurança diferencia-se desses órgãos pois, como bem refere o autor no artigo, à PM compete prevenir e combater a criminalidade, promover a segurança de pessoas e bens e actuar no âmbito da investigação criminal sob a direcção do Ministério Público, isto é, exercer funções de segurança interna em sede de segurança segura (security).
Mesmo quando se pretende justificar a terminologia jurídica usada na LSI, alegando que o capitão do porto exerce funções de segurança interna, como no caso em que dirige o Centro de Coordenação de Operações de Porto, no âmbito do código ISPS, tal competência terá que ser lida à luz da inerência de funções de comandante local da PM. Não é linear que se não existisse essa inerência, que em determinados cargos até pode suscitar eventual inconstitucionalidade, tal competência fosse aceite pelas outras forças e serviços de segurança.
Digno de nota é, ainda, a forma como o articulista releva o facto do comandante-geral ser o dirigente máximo da PM, nos termos do DL 235/2012, mas omite que, não é ele que despacha com o Ministro da tutela, o que na prática lhe retira dignidade estrutural funcional e eficácia no exercício do cargo, situação que não se verifica nas outras forças e serviços de segurança.
Ao partir deste diploma, que reforça o vínculo funcional entre a PM e a AM e daí deduzir que existe uma lógica institucional que justifica a não existência de um único departamento governamental destinado a acomodar as polícias, o autor, está a tomar uma posição explícita oposta a qualquer integração da PM no MAI, mas implicitamente, porque não expressa, está a pôr em causa a integração da PM no MDN. Provavelmente esta não será a intenção do autor. Mas na realidade, por esta lógica institucional, que eu concordo, os órgãos da Administração têm que estar funcionalmente dependentes do Ministério responsável pelas matérias às quais estão vinculados pelas suas funções, como acontece com a PJ e a ASAE.
Ora, a PM não é uma força de segurança de competência especializada nos assuntos de defesa, mas antes, nas áreas e matérias do mar, que estão atribuídas ao Ministério do Mar. Se é profundamente justificável defender, que existe um vínculo intrínseco entre a AM e a PM, e que ambas as instituições devem depender do mesmo Ministério, já não se entende, que se insista neste erro capital na lógica organizacional estrutural dos governos, desde que foi criado o Ministério do Mar e o da Defesa deixou de tutelar e coordenar os assuntos do mar. Só a pressão corporativa o justifica, nunca o interesse público.
A lógica, ao ser criado um Ministério do Mar, deveria ser a de este Ministério integrar todos departamentos públicos com responsabilidades no mar, em particular, aquelas que materializam as funções inerentes ao"flag state", "port state" e "coastal state"controlo.
Como é que departamentos do Estado, que têm responsabilidades partilhadas sobre a mesma matéria, estão em tutelas diferentes?
A dispersão não facilita uma visão de conjunto e gera ineficácia na acção, com perdas em termos de custos-benefícios.
Isto é ainda mais incompreensível, quando o Ministério do Mar surge na sequência de ter sido assumido pelos mais altos magistrados da Nação, que o mar era um desígnio nacional.
Existem, nomeadamente, movimentos para se criar uma Comissão Parlamentar para o Mar. Uma única tutela para os assuntos do mar, a par de uma estratégia bem estruturada e uma legislação moderna e atractiva, são, por certo, os pilares que podem sustentar uma política de sucesso para o desenvolvimento de uma economia do mar. E é por isso que não se compreende, porque é que, meros interesses corporativos, se podem sobrepor aos interesses nacionais, impedindo a consolidação sólida e efectiva dum ministério do mar, num país historicamente pleno de maritimidade.
Em resumo, podemos concluir que estes vinte anos de Polícia Marítima demonstram que o Ministério da Defesa não tem vocação, nem para tratar de assuntos marítimos e muito menos para tratar de assuntos de polícia.
Onde estava o MDN quando se discutiu a adesão ao espaço Schengen, e Portugal assumiu o compromisso com os parceiros europeus de ter uma força policial a controlar a fronteira marítima, que passou, então, a fronteira externa da União?
O MAI, então liderado pelo Dr. António Costa, actual primeiro-ministro de Portugal, aproveitou o ensejo e projectou a GNR para o mar. Ao MDN, ou por desconhecimento, ou por incompetência, ou por a argumentação relativa ao duplo uso lhe ser conveniente, ou eventual comodidade, ou por intenção assumida não afirmada, ou por outro qualquer motivo de razão não conhecida, esta questão fulcral para o futuro da PM, passou-lhe ao lado e não soube,ou não entendeu como sendo adequado,defender a sua Polícia.
Os argumentos então utilizados pelo MAI eram óbvios – a Marinha não tinha autoridade competente e a PM não tinha capacidade. Duas verdades insofismáveis, mas ultrapassáveis se o MDN apostasse na PM, dotando-a dos instrumentos legais estruturantes, da formação adequada e dos meios humanos e materiais necessários, que ainda hoje se reclamam, à execução das suas funções.
Só que esta política entrava em rota de colisão com o tão incessantemente propalado conceito de duplo uso, pois, por um lado era imperativo clarificar a autonomia funcional da AM e da PM e por outro, o desenvolvimento de competências técnico-policiais da PM orientadas para o mar, colidia com a justificação da identificação da necessidade, a consequente razão de existência e naturalmente com o conceito de emprego de algumas forças militares navais.
Perante este dilema, como hoje, e sempre, o MDN capitulou. E cedeu aos interesses corporativos, mesmo em prejuízo do interesse público, que vê duas forças de segurança a actuar no mesmo espaço e com as mesmas competências. São estes interesses que fazem com que a AM e a PM permaneçam na dependência do MDN, já que em razão da matéria se está num verdadeiro “nó górdio”.
Os dirigentes do ramo militar não querem abrir mão do controlo que, efectivamente, exercem sobre a PM, facilitado pelo facto de estar no MDN, com a inerente possibilidade de exercício de influência directa junto dos diferentes e diversos patamares da estrutura do próprio ministério onde também proliferam vários militares.
Finalmente, a projecção internacional da PM, no âmbito da agência FRONTEX, que o articulista dá justo relevo pela visibilidade funcional interna e externa que dá à instituição, só foi possível graças, por um lado, ao profissionalismos dos profissionais da PM, e por outro, a um trabalho perseverante de argumentação clarificadora sólida e estruturalmente consistente, de dois anos, para demonstrar junto das instâncias europeias (DG MOVE, DG MARE, DG HOME e FRONTEX) que existia em Portugal uma Polícia Marítima, com competências legais e capacidades para operarem no mar, desmontando o que a propaganda do conceito de duplo uso tinha negado por segregação.
Isto obrigou a uma participação activa em todos os fora internacionais em que estivesse em causa o exercício da autoridade do Estado no mar e a uma inserção e integração de profissionais da PM nas comissões e reuniões internacionais que envolvessem forças policiais.
Há três, ou quatro, anos atrás, ninguém nessas instâncias europeias conhecia a existência da PM e isso era superiormente explorado por outra força policial.
Ironia do destino, alguns dos que reivindicavam a paternidade do duplo uso, nos moldes e interpretações que conduziram àquele estado de coisas, são hoje os grandes beneficiários dessa visibilidade conquistada com muito esforço daqueles que nunca abdicaram de defender o interesse público em favor dum qualquer interesse pessoal.
A verdade é que vale a pena lutar quando se acredita, porque os resultados mais cedo ou mais tarde aparecem.
Mesmo que se reconheça que a PM não têm massa crítica suficiente para impulsionar qualquer processo de renovação legislativa – em parte porque os seus quadros dirigentes, incluindo os intermédios, que não pertencem efectivamente à instituição epor isso, legitimamente, terem o seu pensamento focado e deslocado para a sua carreira, não a sentem, nem a pensam – é perigoso dar a entender a noção de que tudo está em perfeita harmonia.
Esta noção pode ser paralisante. Vinte anos é muito tempo.
Nota: Intencionalmente foi omitido o envolvimento da Marinha neste texto, enquanto ramo das forças armadas, não só porque é uma instituição que merece de todos nós o maior respeito e a que eu me honro de pertencer, mas porque os designados interesses corporativos não são mais do que a expressão dos interesses de poder que não visam salvaguardar o interesse público em sede do serviço público, mas sim a sua utilização de forma oportunista.
Álvaro Cunha Lopes
Vice-almirante na reserva
Breve_comentario_ao_artigo_dos_Anais.pdf
Ver artigo a que se refere o comentário: Artigo dos Anais_CMN JUL-DEZ2015.pdf
Deputados comunistas dizem que há pouco mais de 300 polícias para atuar em 1800 quilómetros de costa
O PCP questionou esta semana o ministro da Defesa sobre o que pensa fazer para corrigir problemas que afetam a Polícia Marítima (PM), desde o número de efetivos à ocupação dos cargos de topo exclusivamente por militares da Marinha.
"A PM tem, já há bastante tempo, um gritante desajustamento de efetivo" para os 1800 quilómetros de costa, pois tem "os mesmos 513 efetivos" aprovados em 2000 - dos quais pouco mais de 300 afetos à atividade operacional, assinala o PCP.
A primeira das seis perguntas aborda a ausência de revisão do Estatuto do pessoal da PM - o qual "está obsoleto" por impedir o acesso de polícias ao topo da carreira e manter militares da Marinha em exclusivo nesses cargos.
"Nada foi feito" para cumprir a lei de 2008 que determinava a adaptação das carreiras num "prazo de seis meses", apesar de as outras forças de segurança já terem ajustado "por duas vezes o seu estatuto", refere o PCP, registando que "a manutenção dos oficiais da Marinha [nos cargos de comando] é uma questão tida como intocável".
Os comunistas perguntam depois que medidas prevê o governante tomar para que a PM tenha uma lei orgânica própria para definir "as suas atribuições e competências" e, ainda "um orçamento próprio".
Definir um programa de investimento para a PM, dotar a polícia com um sistema retributivo próprio e acabar com o "crónico incumprimento do horário de trabalho" dos agentes são outras questões dirigidas ao ministro da Defesa pelo grupo parlamentar do PCP.
Recorde-se que, na recente campanha eleitoral para as presidenciais, os candidatos Sampaio da Nóvoa e Paulo Morais abordaram a questão da constitucionalidade de a PM ser dirigida por militares das Forças Armadas e disseram ir analisar a situação junto do Tribunal Constitucional caso fossem eleitos.
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